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Inaugurado em 2011, o Cascais Jazz Club é um espaço discreto, que passa quase despercebido apesar de morar no mesmo centro da vila. Lá dentro, tem uma vida cultural efervescente — afinal, é um dos poucos sítios em todo o concelho com música ao vivo regular, recebendo vários concertos por semana há quase 15 anos. Jazz, blues e bossa nova enchem o espaço de quinta-feira a domingo, com formações de músicos residentes ou convidados especiais que por ali passam. O clube, gerido pela Jam Session Associação Cultural, tem uma sala de concertos e outras mais vocacionadas para o convívio: a ideia é ser um “sítio para se estar”.
“Queríamos um lugar que fosse super confortável, agradável à vista, onde uma pessoa para sair do seu lugar e ir a qualquer lado não tivesse que pedir licença ao vizinho”, explica à Time Out a responsável, a cantora Maria Viana. “E não queríamos que fosse 'toca e foge', 'consome e sai'. Queríamos um sítio em que as pessoas que entram podem ficar até ao final da noite. Queríamos ser a sala de estar fora de casa.”

Era uma vez...
Quem visita o Cascais Jazz Club, nem imagina o que aconteceu para aqui se chegar. E talvez a melhor forma de contar esta história seja começar pela história de Maria Viana, cantora de jazz que fez parte das Cocktail, uma das primeiras girls band portuguesas, no activo entre o final dos anos 70 e o início dos 80.
Maria cresceu na Lapa, em Lisboa, numa família de artistas. É filha do actor, encenador e artista plástico José Viana. Por um lado, no seio familiar “disfuncional”, como descreve, reinava um “autoritarismo” próprio da época, antes da revolução do 25 de Abril. Por outro lado, estimulava-se a imaginação, a criatividade e a cultura. “Eu estava a ser educada para ser aquilo que na época se considerava uma senhora e, ao mesmo tempo, para ser um espírito curioso, culto mas muito disciplinado. São os paradoxos daquela época...”, desabafa. A pequena Maria cantou pela primeira vez publicamente aos 5 anos, num concurso no Funchal, na ilha da Madeira, que acabou por vencer. “Pelos vistos, eu sempre quis cantora, mesmo na época em que julgava que queria ser advogada ou bailarina.” Fez parte de alguns coros, mas a sua voz grave não era bem vista naquela altura e naquele contexto.
Aos 12 anos, Maria ouvia bandas de rock como os Pink Floyd, os Led Zeppelin ou os Deep Purple. Mas, um dia, o pai mostrou-lhe Ella Fitzgerald. "Quando ouvi aquela música, gostei bastante. E ele perguntou-me: ‘Que idade é que julgas que tem esta cantora?’ Como achei aquela voz jovial, disse 20 anos. E ele respondeu-me que tinha 58. Fiquei de tal maneira surpreendida, que senti que aquela música era a fonte da juventude.” Assim nascia o amor pelo jazz e pela música negra norte-americana, que não mais parou de crescer.

Entre os 14 e os 15 anos, período que coincidiu com a revolução e a transformação rápida da sociedade portuguesa, saiu de casa. “Era muito jovem e não tinha para onde ir. Não tinha casa, não tinha trabalho nem dinheiro. Refugiava-me onde havia artistas. Onde houvesse música ao vivo ou teatro, havia alguém que me conhecia, a mim ou ao meu pai. Portanto, aí tinha mais hipóteses de ser protegida de alguma maneira”, explica. Embora tenha chegado a “passar fome”, cantar nos bares e nos clubes tornou-se uma paixão tão forte que ultrapassava todas as dificuldades.
Cantava Barbra Streisand ou James Taylor, mas aos 17 anos, numa actuação no hotel Sheraton Lisboa, percebeu que não pdoia escapar ao jazz. Foi quando conheceu o crítico de jazz do Diário de Notícias de então, José Carlos Monteiro Costa. “Disse-me que estava muito surpreendido porque não fazia ideia que havia uma cantora de jazz em Portugal. E eu perguntei-lhe: ‘mas o que eu estou a cantar é jazz?’ E ele respondeu: ‘então mas não sabe que é cantora de jazz?’ Foi assim que começou uma longa amizade – e foi assim que eu comecei no jazz.”
Pela mesma altura, depois uma performance no Botequim, tornou-se parte das Cocktail. Mas o sucesso não foi imediato nem estabilizou logo a vida precária de Maria Viana.

Um amor chamado Manuel Franco
Tinha 38 anos quando conheceu aquele que seria o seu marido até ao fim, Manuel Franco. Ao contrário de Maria, Manuel vinha de uma família pobre, da classe operária. Crescera numa casa feita de madeira, sem gás nem electricidade. Só se conheceram a sério numa fase muito mais avançada da vida, mas os seus caminhos já se tinham cruzado antes. “Ele saltava os muros do colégio onde eu andava quando era adolescente para ir roubar fruta.”
Como as histórias de amor dos filmes, esta também é feita de acasos e coincidências. Conheceram-se no restaurante Velha Goa, numa festa de aniversário de uma amiga de Maria Viana que fora adiada dois dias só para que a cantora pudesse estar presente. Manuel tinha perdido o avião para Paris, para onde ia atrás de uma francesa. “No primeiro encontro, disse-me logo que não tinha um Ferrari, que era colarinho azul, não era rico. Mas era muito cavalheiro. E comeu morcela com alho. Logo para me pôr à vontade, para eu saber que, quando me fosse levar a casa, não me iria certamente tentar beijar.”
Manuel trabalhava nos CTT e, durante os primeiros dois anos de relação, repetia o mesmo gesto romântico a todas as horas de almoço. “Ele vinha de transportes públicos e tinha exactamente nove minutos para me namorar. E foi o que fez, foi mesmo um conto de fadas”, recorda Maria, emocionada.
O clube que não queria, mas que se tornou um sítio de sonhos
Depois do reencontro com um amigo de infância de Manuel, Afonso Viola, agora “um capitalista”, deram-se as circunstâncias que levaram à fundação do Cascais Jazz Club. “Eles tinham sido pobres os dois. Pobres ao ponto de juntarem cêntimos para comprarem uma garrafa de cerveja para dividir. Só que o Manuel nunca quis ser rico nem nunca quis ser chefe de coisa nenhuma. E o Afonso era bastante ambicioso, tinha planos para ganhar muito dinheiro e conseguiu. Passados uns anos, quando se reencontraram, ele disse-lhe: ‘Lembras-te dos sonhos que nós tínhamos de termos um negócio juntos? Agora eu sou rico, posso bancar-te um restaurante’. E ele disse: ‘Eu não quero um restaurante, quero um clube de jazz’. A pensar em mim. Como se eu quisesse um clube de jazz. Mas, como o amava muito, calei-me — coisa rara em mim — e acedi.”
Descobriram, em Cascais, o espaço que agora ocupam. As gentes da vila, conta Maria, falavam de a propriedade ter sido originalmente duas casas de pedra com um poço. “A ribeira passava aqui e a locomoção era feita por barco.” Depois, foi uma loja de electrodomésticos. Arrendaram o espaço e encomendaram o projecto a um arquitecto. “Foi aprovado pela câmara, o edifício iria ser todo partido e feito de novo. Mas era muito caro.” O melhor amigo deu-lhe um conselho: fazer uma associação sem fins lucrativos.
Assim foi. Fundaram a associação com amigos, puseram mãos à obra e construíram aquilo que é hoje o Cascais Jazz Club, com uma componente associativa muito forte – um projecto composto por voluntários que só paga salário a um funcionário.
“Eu só pus duas condições: tinha que haver um projecto para que o ar circulasse e tinha que haver um piano de cauda. Tudo o resto não me importava." Estava concretizado o sonho, que se mantém vivo todos os dias. Só Maria Viana, hoje com 66 anos, continua viva – e continua a ser a pessoa ao leme de um clube que nunca pediu mas que abraça como uma casa com uma missão declarada: “trazer a melhor música possível e habituar o público a pagar para consumir cultura”. Reformou-se enquanto cantora, e só tem pena que o legado do Cascais Jazz Club possa não continuar. “Se eu envelhecer e não puder levar o barco para a frente, o problema é como é que isto continua sem mim. Isto é uma obra. Até lá, vivo como se fosse eterna.”
Largo Cidade de Vitória, 36, Cascais. Qui-Dom 20.00-01.00. 962 773 470