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Este artigo foi originalmente publicado na revista Time Out Lisboa, edição 670 — Verão 2024.
Quem passa pela Quinta do Pisão na estrada N247, de Alcabideche, vê de cá de cima a semi-ruína de um edifício estranho, de traça austera. A grande cruz sobre a enorme e maciça porta de madeira da entrada e os painéis que a ladeiam indicam tratar-se de um edifício religioso, o que se confirma ao lermos a placa na fachada lateral:
Capela da Sagrada Família
Construída pelos internados desta colónia nos anos de 1952 a 1954
Esta “colónia”, criada em inícios de 50 do século XX, algures no campo entre Cascais e Sintra, chamou-se Colónia Agrícola do Pisão. Mas o que era realmente, quem eram estes “internados”, e o que lá acontecia? Foi a este tema que Joana Braga não pôde – nem quis – fugir, ao desenvolver um trabalho de investigação sobre este território para o projecto Paisagens Partilhadas, parte do projecto europeu Performing Landscape, que reflecte sobre arte, paisagem e território e de que a Culturgest é o parceiro português, sendo a Quinta do Pisão a paisagem que se partilha.
Apesar do nome, “Colónia Agrícola do Pisão”, esta instituição não pertencia às sete colónias da chamada “colonização interna”, constituídas entre 1925 e 1954. Como o estudo O Estado Novo e os seus vadios, de Susana Pereira Bastos (1997), mostra, trata-se antes de uma colónia penal para onde eram enviados indivíduos considerados desviantes (vadios, mendigos, homossexuais, proxenetas, etc.). Exemplo de um registo de internamento citado no livro: “«Trata-se de um pederasta. Segue para a colónia do Pisão para amansar.» Referente a J..., 37 anos, natural de Coimbra, transferido em 1947 para a Casa de Trabalho do Pisão.” Nas mesmas instalações encontravam-se indivíduos considerados doentes mentais (sem qualquer assistência ou vigilância psiquiátrica até fim dos anos 50) e outros com doenças altamente contagiosas e mortais, como a tuberculose. A taxa de “saída” por falecimento chegou a ultrapassar os 60% (em 1941).
Em 1977, todos os albergues, anteriormente sob a alçada do Ministério do Interior, passaram para o Ministério dos Assuntos Sociais. Os actuais 300 hectares da Quinta do Pisão são assim hoje propriedade do Ministério do Trabalho e Segurança Social, que, em 1985, fez um acordo com a Santa Casa da Misericórdia de Cascais (SCMC), para que esta a gerisse. A SCMC ainda manteve a exploração agrícola, conseguindo até apoios da então CEE para a modernização dos equipamentos, mas acabou por considerar essa área fora das suas competências e ficou somente com o Centro de Apoio Social do Pisão, cedendo a gestão do resto da propriedade à Empresa Municipal Ambiente Cascais (Cascais Ambiente), para haver abertura do parque à comunidade. É esse trabalho que a Cascais Ambiente tem feito desde 2007, investindo no restauro ecológico do território, que ficou fortemente marcado e debilitado pelas décadas de exploração agrícola e pelo eucaliptal.
Foi nesse território actual que Joana Braga, arquitecta de formação, investigadora e artista multidisciplinar, mergulhou na sua investigação, expondo-se ao local, “deixando-se afectar por ele”, como nos diz, “indo sem rumo, para afinar o corpo com o lugar”. Necessariamente, não conseguimos “ir a zeros”, diz-nos, “temos uma série de referências incorporadas, saberes, preconceitos, temos muitas camadas, e vamos com elas. É importante esse início ser de afectação, com o meio envolvente e com as pessoas. Há toda uma urdidura entre humanos, não-humanos, que está agora estabelecida mas que se tece sobre outras camadas, mais escondidas, ou não.”
O Centro de Apoio Social do Pisão é a incontornável componente humana a conhecer neste território e, na sua investigação, Joana Braga falou com a Provedora da SCMC, a mesma que tomou conta do Pisão em 1985. Ouviu então relatos de uma situação que não julgava possível num estado já democrático, em plena década de 80. Excertos das entrevistas que realizou à provedora da SCMC, Isabel Miguens de Almeida Bouça, à directora técnica Anabela Gomes e a alguns residentes foram incluídas como peças sonoras da conferência “O que pode um lugar?”, em que apresentou o seu trabalho de investigação, na Culturgest. Ficamos assim a saber que, em 1985, quando a provedora chegou ao Pisão, mandou queimar os alimentos das despensas, cheios de bicho, e os colchões, com parasitas. Que a população residente passava fome – “perguntavam: amanhã ainda há?” –, e que o chão do refeitório escorregava, de gordura e fezes. Que um dos homens tinha até vermes nas costas. “Sabe o que é mais indescritível? É que isto estava nas barbas de Cascais”, exclama a provedora, em entrevista.
Foi no Centro de Apoio Social do Pisão que Joana Braga tomou conhecimento da existência de uma colecção de fotografias dos tempos da colónia (que urge restaurar e tratar) – que não mais conseguiu esquecer – com os homens vergados a cavar debaixo do controlo dos polícias armados com espingardas, num território bastante árido e que nada se assemelha à actual paisagem da Quinta do Pisão.
Os relatos desses tempos, quando a quinta era a Colónia, dependência do Albergue da Mendicidade de Lisboa, são piores ainda. Para lá da miséria e abandono, há violência extrema e repressão. Homens vergastados com “chibata de marmeleiro”; “alimentação feita num bidon semelhante aos do óleo, semelhante à lavadura que se faz para os porcos; eles baixavam a boca ao prato e aquilo era devorado”; “as fotografias mostram, mas nunca hão-de mostrar os cheiros”, são alguns dos testemunhos. Um dos residentes mais antigos, de 86 anos, relembra: “Eu vim para a Mitra com 6 anos de idade e aos 14 vim para aqui para o Pisão. Antigamente era colónia penal. Os polícias andavam com pistolas e cassetetes, e quem não trabalhasse... ia para o segredo [solitária], 15 dias a pão e água. Sofri muito... (...) os enfermeiros a bater naqueles, é melhor nem dizer nada... [silêncio] e ao fim de nove meses, deu-me na cabeça e olha... fugi” (...) Quando vim para aqui a segunda vez, em 85, já me mandaram meter num curso de jardinagem, e eu fui, para Ranholas. (...) E agora há pouco tempo acabei o meu curso de hotelaria. (...) Eu gosto de cá estar. O Pisão agora já não é o que era.”
Isso mesmo – que já não é o que era – se confirma com os depoimentos de um casal de residentes, ela com formação em tapetes de Arraiolos feita aqui, que agora procuram emprego e casa para seguirem a sua vida no exterior.
Na conferência “O que pode um lugar?”, Anabela Gomes, a directora técnica do Centro de Apoio Social do Pisão, realçou a importância desta investigação, para que se perceba como é impossível a comparação com o presente: a “regeneração” que se fazia “nesta altura de uma sociedade repressiva como era o Estado Novo, em relação às pessoas que saíam da dita normalidade, fossem elas doentes ou pessoas que só por deambularem, sem ter um rumo, podiam ser enclausuradas num qualquer sítio – uma situação horrível”.
“Nós, no Centro, o que queremos hoje é devolver às pessoas aquela dignidade que elas perderam pelo facto de terem sido colocadas lá”, continuou, alertando ainda para a necessidade de termos um olhar mais crítico para alguns posicionamentos actuais, cá e noutros países, em relação a imigrantes e sem-abrigo, e a importância de trabalhos de investigação como este serem feitos e partilhados, para se perceberem os riscos actuais.
A conferência “O que pode um lugar?” pode ser lida e ouvida no microsite da Culturgest dedicado ao projecto Paisagens Partilhadas.