Os grandes chefs são hoje empreendedores, multiplicam restaurantes debaixo do seu nome e supervisão. Alguns tradicionalistas indignam-se: defendem que o lugar de um chef é na cozinha. Argumentam que os clientes vão a um restaurante provar o que um chef cozinha. Na verdade, mesmo quando estão na cozinha, os grandes chefs raramente cozinham. Eles criam receitas e menus, montam, formam e lideram equipas, não tratam dos tachos e panelas. Começaram como operários da cozinha, para se tornarem criadores e líderes. Claro que qualquer criador tem de começar por ser bom no seu ofício. Não se cria sem técnica e esta exige trabalho. Os grandes chefs começaram por ser competentes mestres do seu ofício para, progressivamente, se assumirem como criadores.
Hoje, em muitas áreas, o negócio está na monetização de uma marca. Os chefs, tal como os artistas, estão a aprender a ser e tirar partido das suas marcas. É por isso natural que multipliquem os “seus” restaurantes. Mas a forma como o fazem varia muito. Há aqueles que “transportam” o seu restaurante estrelado para outros locais do mundo. Alguns adaptam a sua identidade e menu aos produtos e cultura gastronómica da nova geografia, outros limitam-se a criar uma cópia do original. Há aqueles para quem o seu “segundo” restaurante é uma forma de democratizar o acesso à sua comida, oferecendo uma versão mais low cost do que fazem. Há também aqueles – cada vez mais – que procuram adoptar uma filosofia diferente nesses “segundos” restaurantes. Mantêm uma identidade forte e criativa, mas podem apostar em algo mais simples e assente no produto. Há também aqueles que oferecem no segundo restaurante uma cozinha tradicional com a garantia de um “chef”. E há, por último, aqueles que oferecem não um, mas vários destes formatos. Em comum, a garantia que a marca do chef oferece.
José Avillez optou por adoptar diferentes conceitos nos seus vários restaurantes. Qual nos traz a(o) Maré? A localização é extraordinária, numa das mais belas paisagens de mar do mundo, entre Cascais e Guincho. Infelizmente, esta costa tem tanto de belo como de vento e a disposição da esplanada não permite um seu uso tão frequente como só olhar para ela traz vontade. Nas duas visitas estava fechada. Mas o mar não deixa de estar presente, na sala e no prato. A localização não deixa alternativa: na Maré reina o mar.
Avillez optou por uma cozinha tradicional, que recorda vários dos restaurantes já famosos da zona (incluindo o histórico restaurante que ocupou em tempos este espaço), mas sem cair nos menus excessivamente longos que estes, frequentemente, oferecem. A isso acrescentou pequenos apontamentos da sua cozinha criativa, importados de outros restaurantes. O Maré tem de bom o ser tudo bom. O Maré tem de mau recordar-nos que podia ser melhor. Os toques de criatividade denotam algum cansaço de tão vistos nos restaurantes de Avillez. Os pratos tradicionais são, no geral, de óptimo nível, mas somos sempre tentados a recordar que algures há uma versão ainda melhor. Este é o custo do estrelato quando se apresenta numa versão B: ainda que não esperemos o original, estaremos sempre a avaliar o que comemos à luz das expectativas criadas pelo original...
Come-se bem no Maré, bastante bem até. Mas parece que falta sempre alguma coisa. O couvert incluía, de uma das vezes, húmus de tremoço e de outra vez (se a memória não me falha) de laranja. Para além disso, manteiga dos Açores e manteiga fumada (muito boa). Pão razoável, mas lá está: esperava mais de um restaurante Avillez.
Começámos por umas gambas da costa de enorme qualidade e cozidas na perfeição (uma cozedura muito rápida – a lembrar os famosos 25 segundos de Ferran Adrià – e com o sal abundante). Doces e intensas no sabor. Das melhores que já comi. Vale a pena ir ao Maré só para comer estas gambas. Um par de maioneses acompanhava. Eram apenas razoáveis, mas com gambas como aquelas quem necessita de maionese?
Seguiu-se uma espécie de ceviche (vamos simplificar, aceitando essa designação genérica para qualquer peixe cru mais ou menos levemente curado ou marinado): corvina com abacate. A acidez e o picante estavam como se deseja (ou, pelo menos, este vosso crítico deseja). Muito bons os cones de atum (ok, nem todos os elementos criativos importados da história culinária de Avillez denotam cansaço!). Os cones feitos com uma farinha de tempura e alga que os torna leves, mas profundamente crocantes, suportando e exaltando na perfeição o atum. Uns ovos verdes, crocantes e em escabeche, também foram bons, mas o escabeche estava algo envergonhado. Amêijoas à Bulhão Pato de bom nível, mas um daqueles pratos em que a expectativa seria inatingível e assim foi. Quando comemos um prato icónico da nossa tradição “feito” por um chef famoso, juntamos as melhores memórias desse prato à maior das expectativas. É quase impossível corresponder a isso e assim foi.
Nos pratos principais, provou-se, numa ocasião, o arroz de carabineiros e, noutra, o xerém do mesmo. Ambos com bom produto. O arroz, de bago carolino cheio e com a cozedura certa, cremoso, corrido e com o arroz infusionado do sabor do carabineiro. Não era arroz com carabineiro, mas um verdadeiro arroz de carabineiro. Ao xerém faltou essa mesma fusão e talvez um pouco mais de coentros.
Ainda nos principais, provou-se uma lula à Maré, com um molho de manteiga e toque de limão (apenas isso, não um beurre blanc). Saborosa, mas recordou uma versão ainda melhor que “navega no mar da nossa restauração”. Finalmente, o prato do mar: robalo, carabineiro, lula e amêijoas (todos na grelha, excepto as amêijoas). Todos com excelente produto e bem tratados. Provámos três acompanhamentos: batatas a murro com uma espécie de aioli picante, inacreditavelmente boas (aqui, não ficaram expectativas por superar); batata frita de bom nível e o xerém também bom, mas a que faltava um pouco de sal.
As sobremesas são versões mais pobres de clássicos de José Avillez. Não impressionaram e denotaram algum do tal cansaço: um novo que lembra algo velho ou algo velho que quer parecer novo.... Óptimas areias de Cascais a acompanhar o café. Preços ligeiramente acima da concorrência. Tudo somado, esta maré traz consigo bom peixe e marisco, sem grandes ondas nem entusiasmos, mas com competência e satisfação se moderarmos as expectativas.
Crítica originalmente publicada na edição de Verão 2024 da Time Out Lisboa