Homenagem às Carquejeiras do Porto
© João SaramagoHomenagem às Carquejeiras do Porto
© João Saramago

Monumentos portugueses que fazem justiça pela própria arte

Há um lado mais justo na arte pública. Encontrámos monumentos que homenageiam vítimas de discriminação.

Renata Lima Lobo
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Cidadãos de todo o planeta têm-se insurgido contra representações em bronze e pedra de figuras pouco consensuais no que diz respeito à história dos direitos da humanidade. O rastilho é o conhecido movimento global Black Lives Matter, uma luta já longa demais que clama por soluções para um mundo mais justo entre todos, independentemente da cor da pele. No entanto, não estamos a começar do zero. Em Portugal, há um conjunto de obras públicas que prestam homenagem a vítimas de injustiças cometidas ao longo dos séculos, em território nacional e não só. Fomos visitá-las.

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No Porto

Da Cidade, às Carquejeiras

É uma estátua e também um pedido de perdão. Inaugurada no passado dia 1 de Março, este monumento é uma homenagem às carquejeiras, mulheres pobres que transportavam, muitas vezes esfomeadas, entre 30 a 50 quilos de molhos de carqueja, que serviam como acendalha para os fornos das padarias e das lareiras das casas burguesas. Esta exploração do trabalho da mulher (recebiam uma miséria) decorreu entre finais do século XIX e meados do século XX e eram longos os percursos que percorriam. E nem todos eram planos. A carqueja era transportada da beira-rio até zonas como o Carvalhido, Paranhos, Boavista ou Antas e um dos pontos mais duros era a chamada “via dolorosa”, hoje Calçada das Carquejeiras, uma via que liga os Guindais às Fontainhas e que tem uma inclinação de 22%. No topo dessa rampa foi erguido este monumento, promovido pela Associação de Homenagem às Carquejeiras do Porto, fundada por Arminda Santos, e executado por José Lamas.

Em Lisboa

Memorial de Homenagem às Pessoas Escravizadas

É o monumento na ordem do dia, mas ainda está a caminho. Lisboa vai finalmente homenagear todas as pessoas que foram escravizadas às mãos do colonialismo português ao longo de vários séculos. A promotora do futuro memorial do Campo das Cebolas é a Djass – Associação de Afrodescendentes, que em 2017 viu a sua proposta sagrar-se uma das vencedoras do Orçamento Participativo de Lisboa, iniciativa que permite aos alfacinhas participarem directamente em decisões da cidade.

O início da construção estava planeado para o primeiro semestre de 2020, mas a pandemia trocou-lhes as voltas e ainda não há previsão para a construção e posterior inauguração. No final do ano passado, a associação apresentou os projectos finalistas para o memorial, após seis sessões públicas de votação, e o vencedor foi conhecido no início de Março: “Plantação – Prosperidade e Pesadelo”, do artista angolano Kiluanji Kia Henda. Trata-se de uma representação de uma plantação de 540 canas de açúcar com três metros de altura cada, feitas em alumínio preto e separadas por 1,5 metros entre si. Pelo meio, uma zona mais folgada da plantação, com um anfiteatro semicircular em betão, um ponto de encontro que também servirá para eventos culturais, como música, teatro, leituras ou diálogos académicos.

Memorial às Vítimas de LGBTfobia

Já foi há três anos que o coração da cidade saiu do armário com um monumento de homenagem às vítimas de homofobia. Inaugurada a 17 de Junho de 2017 no Jardim do Príncipe Real, dia da Marcha do Orgulho LGBT, é uma ideia que partiu de António Serzedelo, fundador nos anos 90 da associação Opus Gay. O activista quis erguer uma estátua à semelhança das que existem noutras metrópoles, como o Pink Triangle, em Sitges, ao pé de Barcelona, ou Homomonument, em Amesterdão.

O monumento em betão armado, cimento e ferro lembra todos os que foram (e são) perseguidos pela sua orientação sexual e foi feito para que todos se possam sentar nele, com duas pessoas a tentar sair do armário. Tem dois metros e meio e inscrições em inglês e português, onde se lê: “Lisboa de Abril – Cidade do Mundo. Homenagem às vítimas da intolerância homofóbica”.

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Memorial às Vítimas do Massacre Judaico de 1506

A comunidade judaica foi vítima de perseguição em vários momentos da história e também Portugal meteu o pé na argola. A 19 de Abril de 1506, no domingo de Pascoela (o que se segue à Páscoa), mais de quatro mil pessoas, na sua maioria cristãos-novos (recém-convertidos ao cristianismo), foram assassinadas por uma multidão de pessoas que ocupou as ruas da cidade. Segundo os cronistas Damião de Góis e Garcia de Resende, nesse dia, na capela do Convento de São Domingos, junto ao Rossio, foi avistada uma luz “milagrosa” num crucifixo, enchendo a igreja de fiéis. Quando um dos cristãos-novos presentes alertou para o facto de ser apenas o reflexo de uma candeia, foi arrastado para o exterior, agredido e morto por uma multidão.

Os ânimos exaltados arrastaram-se por três dias, incitados por uma dupla de frades, e foram assassinados praticamente todos os convertidos que circulavam pela cidade. Aos cristãos-novos era atribuída a culpa da peste que na altura assolava a cidade, mas posteriormente o rei D. Manuel I condenou à forca e retirou bens a muitos portugueses que se provou estarem envolvidos no massacre. Este negro episódio da história portuguesa ocorreu três décadas antes da instituição da Inquisição portuguesa e é lembrado num memorial localizado no Largo de São Domingos. Uma estrutura semiesférica inclinada inaugurada a 19 de Abril de 2008 e desenhada pela arquitecta Graça Bachmann, sob proposta da Comunidade Judaica. Se quiser explorar a história do massacre, leia o romance O último cabalista de Lisboa, do escritor Richard Zimmler.

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