Com o projecto Mira (Espaço Mira, Mira Fórum e Mira | Artes Performativas), rasgou um novo pólo de cultura num dos locais mais improváveis da cidade: Campanhã. Tudo começou com a paixão pela fotografia. Um encontro nos armazéns de onde brota arte.
Campanhã é a sua casa?
Sim. Designadamente a Rua de Miraflor. É onde passo os dias, mesmo ao fim-de-
-semana. Mas nunca pensei vir viver para aqui.
A abertura do Mira Fórum em 2013 alterou os vossos planos de vida?
Totalmente. E fazia todo o sentido vivermos aqui. Por exemplo: temos uma inauguração, uma tertúlia, o lançamento de um livro, ficamos aqui a conversar e começámos a perceber que era óptimo se tivéssemos por perto uma casa, com uma sala muito grande, uma mesa grande, cadeiras, onde essas conversas do Mira se prolongassem. O projecto da nossa casa integra uma maneira de estar aqui. E gostamos muito da rua.
Foram bem acolhidos pela vizinhança?
Sim. Viemos para aqui por acaso. Eu e o João [Lafuente, marido, co-responsável pelo Projecto MIRA] fazemos fotografia desde a adolescência, e para nós isso tem muito a ver com o colectivo, com a troca e aprendizagem com os outros. Sentíamos a necessidade de estar com outras pessoas, e há uns 20 anos soubemos que no Café Poeta havia um grupo de pessoas dedicado à fotografia que se encontrava e conversava. Começámos a aparecer, chegámos a fazer uma ou duas exposições colectivas, e foi-se desenhando, na minha cabeça e na do João, que um dia em que terminássemos a prática profissional queríamos ter um lugar onde os fotógrafos se reunissem.
Esta aventura começou quando deixou de ser professora ou as duas coisas ainda se cruzaram no tempo?
Cruzaram-se. Era professora de Filosofia, Psicologia, Psicossociologia. Adorei ser professora. Podia estar muito mal mas entrava numa aula e virava tudo. E fui sempre muito activa nas escolas, nos projectos… Sou um bocado apanhada por projectos (tenho obra publicada sobre metodologia do projecto). O João estava ligado à informática na Caixa Geral de Depósitos. Tínhamos a ideia de criar condições económicas para que um dia desenvolvêssemos um projecto alternativo às nossas profissões, porque a vida é longa e é preciso ter projecto para a vida inteira. Além disso, também ajudou o João e eu sermos muito activistas políticos, sociais, sindicais.
Imaginavam que o projecto pudesse adquirir estas dimensões?
Nunca. Ultrapassou-nos completamente, no melhor sentido. A nossa ideia era ter uma galeria de fotografia. Sabíamos que não íamos para Miguel Bombarda porque o nosso perfil não é, de todo, esse. E em 2012, a [arquitecta] Adriana Floret falou-me de uns armazéns em Campanhã.
Estranhou a localização?
Achei estranhíssimo. Mas ela mostrou-me umas imagens, acho que viemos aqui passados três dias e fizemos o contrato-promessa. Foi claramente amor à primeira vista – e isto estava degradadíssimo.
Regressemos à vizinhança: foram bem acolhidos porque deram vida a uns armazéns devolutos?
Quando viemos para aqui, considerámos que não íamos fazer militância. As pessoas daqui é que tinham de nos assimilar porque nós é que somos novos. Não entrámos naquela atitude proactiva, que às vezes acontece neste tipo de realidades, em que parece que chega um meteorito e desata tudo a bramir à comunidade. Respeito total. As ligações foram sendo feitas lentamente, como todas as relações sérias. Começámos com os nossos vizinhos do lado, o António e a Benilde, uns senhores com perto de 80 anos. Uns amores. Foram eles que inauguraram o Mira.
E a seguir?
A seguir foi a Rosa, da Adega A Viela. Porque tinha comida, era barato e tem um ambiente de que gosto muito, aquela coisa de conversar com o gajo do lado. E há uma coincidência inacreditável: a Rosa foi operária na fábrica do meu pai [Pincelaria Pardal, de José Pereira Monteiro]. Depois, a Sandra e o Rui, que têm uma actividade muito interessante numa associação daqui, Os Malmequeres da Noêda. [Noêda é um lugar de Campanhã.] Este casal achou que podia fazer alguma coisa pela associação, que é muito pobre, e começou a ensaiar as crianças no que chamam de danças urbanas. Nós começámos a ir lá fotografar e filmar. E o Rui, como é electricista, quando temos problemas vem aqui. É uma parceria. Não há paternalismo.
A visita do Presidente da República ao Mira [em Setembro de 2017] deu um empurrão à aproximação mútua?
Disse ao João, “Isto não é para a galeria. A visita do homem vai ter de ser para a rua.” Fui às mercearias e às ilhas dizer que o Presidente vinha cá. Foi uma festa, e acho que foi esse o ponto… Houve um aumento claro da auto-estima. Quando a SIC fez uma reportagem sobre a galeria, eles diziam, “Porra, agora ao menos falam de nós sem ser por causa da droga e por sermos pobres e que não temos condições. Agora é por causa das artes.” Há um lado imaterial, para lá da actividade cultural, que é muito importante para nós. Isto faz parte de um sítio que respeitamos, mas onde também somos activos e interventivos.
O Mira atrai até Campanhã pessoas que, de outra forma, dificilmente passariam por cá?
Quando viemos para aqui, as pessoas achavam que estávamos malucos. Ninguém sabia onde era Miraflor. Se me perguntar se este era o nosso projecto inicial, responder-
-lhe-ei que não. Estávamos disponíveis – a palavra “disponibilidade” é, para mim, chave; se estivermos disponíveis descobrimos coisas extraordinárias no mundo, se não estivermos disponíveis não vemos nada à frente.
A visibilidade do projecto tem arrastado pressões comerciais?
Produzir cultura não é um negócio. Se quiséssemos ganhar dinheiro tínhamos aceitado algumas das várias propostas de fazer nos armazéns um restaurante ou um bar. Há aqui uma dádiva de toda a gente, dos artistas, curadores, produtores, nossa, em nome de um bem maior que é a intervenção cultural numa zona do Porto onde ninguém queria nada. Alguém dizia que isto já não são galerias, é um centro cultural. Acabamos por cobrir muitas áreas, sempre numa perspectiva da diversidade, da pluralidade, obviamente com preocupações sociais. Temos uma grelha de valores, mas para lá dessa atitude face ao mundo, temos a expectativa do estímulo do mundo e de estarmos à altura de lhe responder. E temos tido muita sorte com as pessoas que nos têm acompanhado. Nunca temos a sensação de estar sozinhos.
Há uma atenção e interesse crescentes por Campanhã. Em que é que gostava que esse interesse se traduzisse na prática, e o que é que gostava que não acontecesse?
Campanhã tem uma vantagem: é muito grande. Tem muita gente. É pobre. Tem o edificado numa desgraça. Está cheio de fábricas, armazéns e casas abandonados. Uma freguesia pequena é um nicho ecológico, e quanto mais pequena e característica for, qualquer alteração vinda do exterior perturba o sistema. Já Campanhã é imensa. É complicado abanarem as suas estruturas. Além disso, a malha social é incrível. Mas não se sabe como isto vai acontecer. Ninguém imaginaria há seis, sete anos, que o Porto seria um sítio de grande procura turística, atrás do qual vêm os interesses imobiliários. O pior que podia acontecer era a freguesia ser traída por uma invasão, que não tivesse a ver com ela, da parte de quem tem maior domínio económico ou estatuto social.
Uma espécie de colonialismo.
Precisamente. E a coisa boa é estarmos prevenidos e falarmos sobre isto. Sou contra que se venha a Campanhã fazer a tour do “Olha como é que era o Porto dos pobres”. Vivemos bem aqui. Não colonizámos ninguém, não somos pressionados por ninguém. Temos um processo convivial. Sou a favor da mistura, desde que haja respeito mútuo, e sou contra guetização – seja dos ricos, dos pobres, dos intelectuais. É a mistura que leva a novas formas de estar, novas aprendizagens, novas formas de comércio, de se residir, de viver.
É optimista por natureza?
Sou. Quando me acontece uma coisa negativa, acho sempre que dali sairá algum produto positivo. E sai. Temos é de o encontrar. Excepto a morte. Como não sou crente, acho que acabou mesmo e é uma perda. Aí até dava jeito ser religiosa. A lamúria é a coisa mais horrível: gastam-se energias e não serve para nada. Sou a favor do protesto, da intervenção, da manifestação; da lamúria não.
Como espera que a cultura seja tratada no segundo mandato de Rui Moreira?
O Paulo Cunha e Silva foi uma coisa extraordinária, e o trabalho que fez não foi excepcional apenas porque veio a seguir às trevas. Os dois mandatos de Rui Rio foram o maior desastre do ponto de vista cultural para a cidade. Felizmente houve bolsas de resistência que procuraram alternativas de sobrevivência. O que o Paulo trouxe de excepcional, além de todo o kit intelectual, foi a proximidade. A cultura ou é proximidade, ou não é cultura. E alargou o espectro do que é cultura e da sua acessibilidade. Acho que traçou um caminho que já não tem retorno. Pode-se aprofundar mais ou menos.
E agora vai aprofundar-se mais ou menos?
Depois da aprendizagem feita pelas instituições, pela população, pelos públicos, têm de ser os agentes (artistas, programadores, curadores) a assumir a grande responsabilidade da produção da cultura. A palavra é-lhes passada para seguirem o seu próprio caminho.
Vê-se como uma futura vereadora da Cultura da Câmara do Porto?
Não. Acho que me matava. É um cargo com tantas vertentes administrativas e políticas que se torna muito difícil compatibilizar com o que acho que é a cultura e com o que quero fazer na minha vida.