Por ela passa a gestão dos teatros, bibliotecas e museus municipais, além de programas bem-sucedidos como o Cultura em Expansão e Um Objeto e Seus Discursos por Semana, mais a Feira do Livro e o Fórum do Futuro.
Quando trocaste Lisboa pelo Porto?
Dia 15 de Dezembro de 2015.
Tens a data gravada na memória.
Não foi uma altura fácil porque tinha acabado de sair da Direcção-Geral das Artes, onde trabalhei 12 anos, e não fazia ideia do que se pudesse seguir. Colocavam-se várias hipóteses mas confesso que, por algum provincianismo, pensei que fosse trabalhar só em Lisboa. Quando surgiu o convite do presidente da Câmara pedi o fim-de-semana para pensar, mas logo no sábado de manhã telefonei a dizer que aceitava.
Houve algum momento, desde Dezembro de 2015, em que já tivesses sentido que és do Porto?
Também me lembro: foi na noite de 23 de Junho de 2016. O meu primeiro São João. Foi completamente mágico. É uma noite incrível, de uma alegria genuína que se sente na rua, um mar de gente. Senti um entusiasmo misturado com um sentido de pertença. Pensei, “Quero mesmo fazer parte disto, estar cá”. E só passado um ano é que visitei o Museu do Futebol Clube do Porto, e foi quando comecei a inteirar-me mais da história e das tradições do clube. Tornei-me portuense mais cedo e portista mais tarde.
Tornaste-te portista?
Sim. Também sou (ou era; acho que posso dizer assim) do Estoril Praia, e acho que faz sentido, depois de ter percebido o que foi a luta deste clube para se afirmar, particularmente na altura do Estado Novo. Lembro-me de pensar, “O Estoril não me vai levar a mal, mas agora a minha alma está aqui”. Este é um clube que teve de lutar pelo seu lugar e pelos seus direitos, e como investigo e interesso-me bastante pelas agruras de se pertencer a uma minoria, e o facto de elas serem muitas vezes oprimidas e desprivilegiadas, identifiquei-me com a história e os valores que passei a conhecer [através do museu].
É frequente esquecer-se que, para lá do futebol tout court, pode haver uma dimensão política e cultural, de identidade minoritária mas resistente, associada ao ser-se portista. Quem está em Lisboa e é do Benfica ou Sporting tem dificuldade em perceber isto.
Há uma miopia. Não percebem que teve de se fazer um percurso para se conseguir ser visto como igual, com os mesmos direitos, liberdades e garantias. Começou-se de um patamar em que se teve de lutar muito, e isso é a história dos desprivilegiados relativamente a qualquer tipo de situação. O facto de me interessar por, e de ter estudado, teoria queer, tem muito que ver com isto. Se calhar as pessoas vão achar estranho dizer que ser portista tem a ver com teoria queer mas eu acho que sim. Porque nem todos conseguem partir do mesmo ponto.
E o caminho que se faz quando se parte de trás, com os seus obstáculos, dificilmente poderá ser consensual, linear, angelical.
Claro. Não se foi levado ao colinho. Mas nós europeus, brancos, pertencentes a uma classe média, também não nos apercebemos de como muitas vezes a vida nos foi facilitada.
O que faz uma directora municipal de Cultura e Ciência?
Gere os equipamentos em termos de administração financeira e de recursos humanos, actividades e orçamento. Temos 15 equipamentos na Cultura que gerimos e estão abertos ao público todos os dias. Alguns têm direcção artística, caso do Teatro Municipal do Porto. Outros têm um coordenador, como os museus. As bibliotecas e os arquivos têm directores. Mas todos em conjunto são geridos por um, digamos assim, ministro ou secretário de Estado, que por sua vez reporta ao número um do Governo, neste caso ao presidente da Câmara, que tem o pelouro da Cultura.
As programações desses equipamentos chegam-te como factos consumados ou…
Tudo vai à validação superior do presidente. Ele é que nos transmite anualmente as linhas estratégicas para a programação, e nós fazemos essa programação do ponto de vista de cada projecto: a Galeria Municipal, comissariada pelo Guilherme Blanc; o Teatro Municipal, pelo Tiago Guedes; os museus pela chefe de Divisão de Museus, a Alexandra Cerveira Lima; as bibliotecas, pela Sónia Pinto, etc. E muitas vezes há ideias que vêm do senhor presidente.
Um dos programas com maior longevidade (logo, presumo, um dos mais bem sucedidos) é o Um Objeto e Seus Discursos por Semana.
É um ciclo muito identitário deste executivo. Entrou no quinto ano agora em Março e muitas vezes atrai mais gente do que aquela que conseguimos acomodar nas sessões. Tentamos que os sítios que o acolhem sejam sempre diferentes para que a descoberta seja dupla: a pessoa vai a um local onde normalmente não consegue entrar, ou onde nunca calhou ir, e ao mesmo tempo ouve um debate e aprende alguma coisa com especialistas num determinado fenómeno cultural, material ou imaterial.
Há um vídeo com pouco mais de um ano em que discutes a acessibilidade de toda a população à cultura, e mencionas o Cultura em Expansão como uma forma de pôr isso em prática. Está a resultar?
É um programa muito engraçado porque os conteúdos não são nada facilitados. Não pensamos em realizar espectáculos mais acessíveis só porque fazemos isto em bairros. O ano passado abrimos com a Ode Marítima do Diogo Infante e no anterior com um concerto da Gisela João. São conteúdos de excelência que apresentaríamos em qualquer palco da cidade. Muitos destes espectáculos têm taxas de adesão bastante fortes, mas há bairros onde está a ser muito complicado trabalhar.
Quais?
Aldoar é um exemplo: programamos lá imensos conteúdos e não conseguimos ter salas cheias como conseguimos, por exemplo, na Pasteleira ou n’Os Malmequeres de Noêda [em Campanhã]. A cidade é pequena mas também é grande e diversa. Todo o programa do Cultura em Expansão é de entrada gratuita, não há qualquer espécie de barreira, e divulgamos igualmente por todo o lado. Em Paranhos também sentimos que a aposta não está totalmente ganha, e há outros que percebemos que estão completamente connosco, como o Bairro do Falcão, a Lomba e a Associação de Moradores da Bouça.
O programa chega a todos os bairros que desejarias?
Ainda temos que progredir um bocadinho. Como em Lordelo do Ouro – não fizemos nada até agora no Aleixo do ponto de vista de artes do espectáculo, por exemplo, mas já se fez lá um grande projecto deste programa: a encomenda ao João Salaviza, para este ano, de uma curta-metragem [Russa].
A Plataforma Campanhã, prevista para este ano, está no raio de acção desta direcção municipal?
Terá algo a ver porque a Fonoteca Municipal vai-se instalar lá e vamos pagar uma “renda” por esse serviço. São mil vinis que temos, em parte, na secção multimédia da Biblioteca Almeida Garrett, e que vieram da Renascença e da RDP. Estavam disponíveis de uma forma discreta e [na Plataforma] vamos poder ter um ponto especializado, com postos de escuta. Além disso, esses vinis passarão a fazer parte dos catálogos, inventariados individualmente. São tantos que ainda não tínhamos começado a fazer esse trabalho.
Esta é a Direcção Municipal de Cultura e Ciência mas temos falado apenas da Cultura. E a Ciência?
O grande projecto que temos nessa área é o Fórum do Futuro, um grande encontro com protagonistas das múltiplas áreas do pensamento a nível mundial, da filosofia à astrofísica, passando pela sociologia, economia, até pela química. Vamos realizá-lo este ano pela quinta vez. Está completamente no segredo dos deuses. Sabe-se apenas o tema, que tem a ver com a ideia de perceber se o pensamento e a prática contemporâneos continuam ou não a ser informados pelos valores e ideário do classicismo.
Além de elogiarem o teu desempenho, as pessoas com quem falei e que te conhecem destas funções dizem que és um caso raro de low profile numa área repleta de egos insuflados. Queres comentar?
Não [risos]. Tem a ver com a minha personalidade. Tenho uma pequena dose de vaidade, como toda a gente. Gosto muito de fazer coisas que fiquem bem feitas, orgulho-me de quando o trabalho fica como o imagino. Sou perfeccionista e exigente, comigo e com os outros. Mas não faço por me destacar porque acho que o trabalho que se consegue fazer é de equipa. Não sou mais importante do que nenhuma outra peça.
O dinheiro para a tua direcção municipal esticou, encolheu ou é o mesmo desde que chegaste?
Tem vindo a crescer todos os anos. Quando entrei estávamos nos 5 000 000€ e este ano apontamos para os 8 000 000€ de orçamento. Porque os projectos justificam-no. Para 2018 vamos ter um novo Museu do Vinho do Porto, na Rua da Reboleira [na Ribeira], no antigo edifício do CRAT,com uma das frentes voltadas para o rio; estás no museu e vês as caves [em Gaia]. Abre no último trimestre. Além desse, estamos a desenvolver paulatinamente dois novos museus para se materializarem em 2019. Um deles é o Museu do Rio da Vila, subterrâneo, cujo percurso começa na estação de metro de São Bento, desce a Rua de Mouzinho da Silveira pela galeria do rio e regressa à superfície no Largo de São Domingos. Estará aberto só meio ano por causa do caudal.
Funcionará no Verão, portanto.
Entre Abril e Outubro, sensivelmente. E vamos abrir, num antigo reservatório de água no Parque da Pasteleira, o novo museu da história da cidade. Chamar-se-á Reservatório. Faltava-nos um museu de arqueologia, mas que contasse também a história do Porto de uma forma mais unificada.
A tua obra sobre a Olga Roriz foi lançada há dez anos. No final de 2017 saiu O Essencial Sobre a Companhia Nacional de Bailado. Tens mais algum livro no horizonte?
Não. Tenho muitos projectos suspensos, um deles o meu doutoramento, que tem a ver com a documentação dos discursos e práticas queer nas artes performativas em Portugal nos últimos 30 anos.