Tanoeiro
António Sá, 50 anos e Pedro Cruz, 29 anos
Nas Caves da Cockburn's, em Vila Nova de Gaia, há uma sinfonia que se repete todos os dias. O barulho das máquinas que trabalham a madeira é entrecortado pelo ritmo das marteladas aplicadas com destreza a toda a volta das pipas que precisam de manutenção, numa sucessão de movimentos tão precisa que mais parece coreografada. Os nove tanoeiros residentes – a última equipa a funcionar numa casa de vinho do Porto em todo o país –, já os fazem (quase) de olhos fechados.
É o caso de António Sá, de 50 anos, que está há 33 na tanoaria pertencente à Symington Family Estates. “Tanto compomos cascos como balseiros ou tonéis, quer aqui, quer no Douro [nos armazéns das outras marcas da Symington]”, começa por contar o tanoeiro responsável. Além de desmontarem, aduela a aduela, as vasilhas de vários tamanhos para reparação, os tanoeiros fazem a “revisão de todos os lotes dos armazéns de Gaia, uma vez por semana”.
Ao contrário da tanoaria tradicional, que tratava da confecção de pipas e barris para o transporte do vinho do Porto por via marítima para os mercados da Europa (o comércio do vinho do Porto era a principal e mais rentável actividade económica da cidade no século XVIII), a Cockburn’s não trabalha com madeira nova. Isto porque, no caso do vinho do Porto, o objectivo é que possa envelhecer sem adquirir os sabores da madeira (como acontece nos vinhos de mesa).
Neste sentido, privilegia-se a recuperação de cascaria com 50 ou 100 anos, cuja madeira velha e avinhada é praticamente insubstituível. Chegadas à oficina, as pipas são desmanteladas e são substituídas apenas as aduelas que estão danificadas. “Às vezes, de uma simples peça velha, fazemos uma coisa bonita”, comenta António, que sublinha, no entanto, que “isto demora o seu tempo a aprender”.
É ele que tem sido o mestre de jovens aprendizes como Pedro Cruz, de 29 anos, que se iniciou na arte da tanoaria há quase dois. O conceito não lhe era estranho, uma vez que trabalhava, anteriormente, na garrafeira da Symington, e o avô fora reformado da mesma empresa. Ainda assim, começou do zero. “Isto é muito diferente daquilo que fazia, mas sempre gostei de trabalhar a madeira”, reconhece.
Segundo António, ter gosto por aprender já é meio caminho andado para se ser bem-sucedido num ofício que deixa mossa no corpo ao fim do dia. “A gente ao fechar os pulsos, parece molas”, confessa o artesão. É, por isso, essencial trabalhar a força para aplicá-la da forma correcta e evitar lesões.
Neste momento, o tanoeiro responsável tem quatro aprendizes sob a sua orientação, que estão “a adaptar-se lindamente e a progredir a passos largos”. A passagem de testemunho reflecte “um esforço que há por parte da empresa em manter a profissão viva”. O que se traduz, também, no equilíbrio de idades da equipa de tanoeiros: três têm menos de 30 anos, três têm menos de ou 50 anos, e dois têm 60 e 61 anos. “Quando estes senhores se aposentarem, tem de haver sangue novo”.
Apesar de secular (o primeiro registo que há da actividade dos tanoeiros do Porto data de 1443), o ofício permanece desconhecido para grande parte das pessoas. “Se eu disser a alguém que sou tanoeiro, ninguém sabe o que é”, comenta António Sá. “Mas se explicar que componho pipas, já percebem”.
Foi para contrariar esta tendência que, aquando da remodelação e reabertura das caves da Cockburn’s, em 2017, as visitas guiadas começaram a incluir a passagem pela tanoaria. Proporciona-se, assim, uma experiência completa ao público que, além de ter acesso às informações e imagens do museu, tem também a possibilidade de ver os tanoeiros em acção. “Às vezes até ajudamos os guias a responder a algumas questões”.
A Cockburn’s é a última casa de vinho do Porto com uma tanoaria de trabalho – as restantes subcontratam este tipo de serviço –, e o último centro de formação in loco da profissão. A sobrevivência e vitalidade desta arte secular, defende António Sá, poderia ser reforçada com a criação de uma escola para tanoeiros nas caves de Gaia. “Podíamos ser pioneiros. Eu já lancei a ideia”, remata.
Por Maria Monteiro