“As tragédias começam sempre com uma cidade assolada por uma peste, então achei que 2020 era uma boa altura para criar uma estrutura artística.” Em ano de pandemia, a actriz e encenadora Sara Barros Leitão decidiu avançar com uma ideia que já tinha há algum tempo: fundar uma estrutura onde pudesse desenvolver os seus projectos e as suas criações, estipulando os seus próprios valores e orientações éticas. “Melhorar as condições laborais das pessoas que trabalham comigo era algo que me interessava”, exemplifica.
Assim nasceu a Cassandra, “nome de mulher”, nome de uma personagem da mitologia grega, nome de uma figura que, de várias formas, representa o feminismo que a actriz e criadora portuense quer trazer para o centro deste projecto. “Apolo quis dormir com Cassandra e, em troca, dava-lhe o dom da profecia. Ela aceitou, mas no momento em que iam consumar o acto sexual, ela recusou e disse que afinal não queria. Ou seja, temos aqui a questão do consentimento”, diz Sara Barros Leitão. Para castigar Cassandra, Apolo colocou-lhe outro feitiço: ela ia sempre conseguir ver o futuro, mas ninguém ia acreditar nela. Ao longo da mitologia grega, foi vista como histérica, como louca. “Isto não é muito diferente do que se passa hoje com o lugar de fala da mulher. As mulheres são pouco ouvidas, não são levadas a sério e são desacreditadas."
A primeira iniciativa desta nova estrutura é um clube do livro feminista chamado Heróides, nome roubado ao livro homónimo de Ovídio, em que o autor escreve várias epístolas assinadas pelas heroínas da mitologia grega e romana. Tal como Sara pretende fazer com a mitologia e os grandes clássicos – questioná-los e deslocá-los das narrativas dominantes e androcêntricas –, este clube tem como objectivo dar a conhecer e dar a debater obras que se afastem do cânone masculino, branco e europeu. “No início do ano passado, uma amiga contou-me que decidiu fazer um excel com todos os livros que andava a ler e pôr o género e a nacionalidade dos autores. Isso ajudou-a na procura de outras autoras, de outras zonas do mundo. Quando ela me disse isto, eu fiz uma radiografia mental do que andava a ler e percebi que o meu discurso era muito contraditório com aquilo que eu lia”, conta Sara Barros Leitão, que investiu neste clube o dinheiro que recebeu do Prémio Revelação Ageas Teatro D.Maria II.
Para contrariar esta visão parcial do mundo, e fazê-lo em conjunto, a actriz convidou 12 pessoas a escolherem 12 livros que serão lidos no clube até ao final do ano, a um ritmo mensal, com acesso gratuito e com interpretação em Língua Gestual Portuguesa. As sessões das Heróides decorrem online, no Zoom, não só por causa da pandemia, mas também porque isso permite tornar o projecto mais democrático e transversal – logo, mais inclusivo; logo, mais feminista. “Assim, as pessoas que não moram nos grandes centros urbanos podem participar”, nota Sara. “Tenho pessoas inscritas que são emigrantes na Suíça e no Luxemburgo, que são do Brasil, do Fundão, de São João de Pesqueira... Isso é muito especial”.
As inscrições para o primeiro encontro, que acontece no dia 30 de Janeiro em torno do livro Corpos na Trouxa - Histórias-artísticas-de-vida de Mulheres palestinianas no Exílio, de Shahd Wadi, já estão fechadas. Esgotaram num instante, o que levou Sara Barros Leitão a desdobrar a sessão entre o Zoom e o Webinar, de modo a acomodar 530 participantes. Os links são privados e intransmissíveis, já que a ideia é criar um espaço seguro e confortável, onde “as pessoas se sintam à vontade para falar” e onde não são permitidos “discursos de ódio, linguagem ou atitudes racistas, xenófobas, sexistas. Também por isso, as sessões não serão gravadas. A próxima é a 27 de Fevereiro, com o livro As Ondas, de Virginia Woolf, e com a actriz e encenadora Sara Carinhas como convidada (as inscrições abrem no dia 1).
“Escolhi 12 pessoas com experiências e vidas muito distintas entre si”, refere Sara Barros Leitão. “Basicamente, pensei: ‘quem é que eu gostaria que me sugerisse um livro?”. Entre as convidadas do clube estão Ana Catarina Correia, investigadora e activista pelos direitos das pessoas com deficiência, que, em Março, irá trazer o livro Mulheres Invisíveis, de Caroline Criado Perez. Em Maio, a militante LGBTI Verónica Lopes apresenta Trans Iberic Love, de Raquel Freire. Em Agosto, a activista e advogada cigana Alcina Jacinto Faneca escolhe Todos Devemos Ser Feministas, de Chimamanda Ngozi Adichie, e, no último mês de 2021, é a vez de Paula Cardoso, jornalista e fundadora do site Afrolink, com Carta à Minha Filha, de Maya Angelou. O clube incentiva a que os livros sejam comprados em pequenas livrarias, e isso já está a surtir efeito. “Tenho tido vários livreiros a escreverem-me e soube que o livro da Shahd Wadi está perto de esgotar.”
Além das Heróides, outro dos projectos da Cassandra para este ano é o espectáculo Monólogo de uma mulher chamada Maria com a sua patroa, com estreia agendada para Novembro no Centro Cultural de Belém (seguirá depois em digressão, com paragem no Porto em 2022). Sara Barros Leitão volta a atirar-se a um monólogo desenvolvido a partir de um processo de pesquisa, desta vez feito em parceria com a socióloga Mafalda Araújo sobre o trabalho doméstico. “Esta investigação parte dos documentos do primeiro sindicato de trabalho doméstico em Portugal e de todos os movimentos das mulheres empregadas domésticas, que desde 1920 começam a organizar-se”, contextualiza a criadora, que irá trazer para cima da mesa uma série de questões implicadas directamente no trabalho doméstico e reprodutivo: a mão-de-obra imigrante e precária, a violência de género, as desigualdades sociais. “Estudos recentes dizem que a mulher trabalha, em média, mais uma hora e quarenta por dia do que um homem em trabalho doméstico e reprodutivo não-pago.” É por estas e por outras que continuamos a precisar de projectos como a Cassandra. Bem-vinda. ■