Há 21 anos que Sónia Araújo trata das manhãs televisivas da RTP a partir do Monte da Virgem. No resto do tempo, dança (e bem) e canta lições para os miúdos. Daqui a nada revelará novos talentos da costura em horário nobre.
A licenciatura em Direito serviu como plano de contingência ou era mesmo esse o seu rumo inicial?
Era um bocado plano B porque no fundo nunca quis ser advogada. Já trabalhava em televisão [no 1, 2, 3] quando acabei o curso. Em miúda eu queria era dançar e depois, mais lá para a frente, pensaria numa vida mais “séria” [risos]. Não que as bailarinas não sejam sérias, mas sabia que era complicado o percurso na dança em Portugal, algo como o dos músicos e dos actores: um dia tem-se trabalho, no outro dia não. Mas é uma área que sempre me preencheu.
Teve alguém em casa a servir de exemplo?
Nunca tive ninguém na família ligado às artes, mas desde pequenina que gosto imenso de tudo o que esteja relacionado com o palco. Fazia teatrinhos de fantoches e participava nas festas da escola, mas sempre de forma muito tímida.
Tímida?
Sempre fui muito tímida, mas estudar dança tornou-me mais comunicativa. Queria ser bailarina, fiz força para que os meus pais me matriculassem numa escola de dança e consegui negociar isso com eles, mas tive de assumir um compromisso: para continuar no ballet tinha de ter notas razoáveis. Se a coisa corresse mal, se não tivesse tempo suficiente para estudar…
O que nunca chegou a acontecer.
Felizmente. Mas nunca fui aluna brilhante, apenas razoável. Fiz o percurso todo na academia de dança, com os exames anuais de ballet com examinadoras inglesas.
Quão exigentes eram as examinadoras?
Implicava muita disciplina. E muita autodisciplina. Mas não me custava porque fazia-o com gosto.
Essa autodisciplina era ainda mais complicada na adolescência, rodeada de amigos exteriores ao mundo da dança?
Era, porque eles iam para o cinema e eu tinha ensaios de ballet. Ou iam para o café e eu, como não tinha tido tanto tempo para estudar, ficava em casa. Exigia mais esforço da minha parte. Mas houve tempo para tudo: amigos, sair, ter namorados. Consegui sempre organizar muito bem a minha vida continuando a fazer o que gostava.
Nesse tempo, qual era o seu território no Porto?
A zona da Boavista/Palácio de Cristal, onde morei sempre. Passeava no Palácio com os meus pais e o meu avô, foi lá que aprendi a andar de bicicleta. A outra casa, onde passava os verões, é a dos meus avós maternos, na aldeia da Lousa [Torre de Moncorvo].
Houve um momento-revelação em que percebeu que seria na apresentação televisiva que iria passar boa parte de, pelo menos, os vinte e poucos anos seguintes?
Não. Se me dissessem que ia ficar vinte e tal anos [na televisão] não acreditava. É daquelas coisas que vão acontecendo: uma pessoa vai ficando, as coisas vão correndo bem… Sabemos que é um trabalho que tem altos e baixos. Há muita gente que aparece e desaparece rapidamente. Tenho a perfeita noção de que nada está garantido – algo que se aplica cada vez mais a qualquer emprego. Temos de ser os melhores profissionais possíveis, aguentar os nossos trabalhos [risos] e estarmos receptivos a alternativas, arranjar outros interesses, não ficarmos reduzidos ao nosso trabalho das nove às cinco.
Foi em parte por isso que, na primeira metade dos anos 1990, andou pelo bailado, teatro, televisão?
Quando deixei a advocacia (ainda cumpri o estágio de um ano e meio, fui fazer umas oficiosas)…
Ainda passou, então, pelos tribunais.
Sim, mas uma coisa muito… Os estagiários não vão lá fazer nada. Andei nisso uma, duas semanas. Não era conciliável com a televisão.
Em 1993 entrou na peça Um Homem de Bem, de Raul Brandão, pelo Teatro Pé de Vento, com encenação de João Luiz.
Era uma figura mais visual do que outra coisa. Havia um actor [Rui Sérgio] a fazer um monólogo e eu representava uma figura muito feminina que se movimentava e, de vez em quando, dizia duas ou três palavras. Foi o meu primeiro contacto mais sério com o teatro. Mais tarde fiz uma peça, encenada pela Luísa Pinto, com reclusas de Santa Cruz do Bispo [Nunca Mais, 2007]. Elas tiveram a oportunidade de sair para as exibições, mas até lá éramos nós que entrávamos [no estabelecimento prisional para ensaiar]. Foi um trabalho puxado mas muito gratificante.
Chegou à Praça da Alegria em 1996, um ano após o início do programa, fazendo parelha com Manuel Luís Goucha.
A Praça é um programa histórico porque já dura há muitos anos, mas entretanto fui fazendo outras coisas. Continuo a dançar cada vez que me chamam, embora não tenha tido mais aulas; tenho uma parceria com o Eugénio Campos Jóias; depois apareceu-me este projecto infantil para cantar para os miúdos [Sónia e as Profissões]… São coisas que vão aparecendo e só me enriquecem como profissional.
Dá a sensação de divertir-se bastante nesse projecto infantil.
Só faz sentido se uma pessoa se divertir. Claro que é bom ganhar dinheiro, porque ninguém gosta de trabalhar só para aquecer, mas faço muitas vezes coisas onde não ganho dinheiro mas em que me divirto na mesma. Ou seja, não é isso que me move. O projecto infantil nasceu de um convite de que não estava à espera; nunca tinha cantado [profissionalmente], cantava só para os amigos e em especiais do programa por brincadeira. Sei que não tenho uma grande voz mas sou afinada e respondi, “Está bem, vamos experimentar”. E a coisa correu bem, o que permite estar agora a gravar o terceiro disco.
Que chamar-se-á As Aulas da Sónia. Como vai ser?
Continuo com temas que têm uma mensagem por trás. O primeiro single é “O Corpo Humano”. E há uma canção muito gira dedicada aos avós. Ou seja, por um lado tem temas que dão conselhos um bocadinho na base da professora e d’As Dicas da Sónia, mas depois também tem temas muito humanos, como este dos avós.
Em 21 anos quase contínuos de Praça da Alegria/A Praça, o que é que mudou na filosofia e estrutura do programa?
A estrutura vem mudando. Mudou a forma como comunicamos: peças mais curtas, entrevistas mais curtas. Chegámos a ter conversas com os avós de 20, 30 minutos. Hoje em dia as coisas são muito mais rápidas, quase a um ritmo frenético. Tentamos acompanhar os tempos. Mas os afectos não mudam. Tentamos que este programa seja uma companhia, que diga algo às pessoas que estão em casa. E os afectos são dados, de certa forma, pelas caras do programa: o Hélder [Reis], a Rita Belinha agora... Temos também um grupo de jornalistas muito jovens que traz sangue fresco, novas ideias. É uma Praça mais leve, e isso agrada-nos.
Há uma cultura das manhãs televisivas a que não é dado o apreço e atenção devidos porque se dirige, ou pensa-se que se dirige, a públicos que costumam ser menosprezados, como donas de casa e reformados?
Exactamente. Isso nota-se logo a partir do momento em que se chama horário nobre ao horário da noite. Isso significa o quê, que este é pobre? Mas as coisas estão a mudar um bocadinho com as novas direcções: alargámos o leque de público, os temas vão piscando o olho a pessoas mais jovens Esse público [donas de casa e reformados] é importantíssimo, até porque a nossa população está a envelhecer. A opinião dos “velhos” conta, e conta muito, e tem de ser tida em consideração.
Esperava uma indignação tão vasta quando a Praça da Alegria se mudou do Monte da Virgem para Lisboa em 2013?
Esperava, mas se calhar não com tanta veemência. Foi uma onda fantástica. Tivemos vigílias à porta da RTP, individualidades solidárias connosco. Sabíamos que o nosso público era fiel, acérrimo, pessoal do Norte que leva as coisas a peito e sentiu-se muito magoado. E este nem é um programa do Norte, é um programa do país.
Há uma identidade nas emissões produzidas no Monte da Virgem que as distinguem de imediato do que é feito em Lisboa?
Acho que sim. Esta equipa tem anos de experiência de programas daytime, de manhã ou de tarde, que Lisboa não tem. Qualquer coisa que se imagine cá, na reunião de preparação de um programa, logo percebemos que já a fizemos. A ciência é fazer diferente. Por isso é que este sangue novo é tão importante.
Que projecto televisivo mirabolante guarda no arquivo mental para uso futuro?
Tenho muita coisa. Vou ter agora um programa novo, Cosido à Mão. Um programa de talentos, como aqueles a que estamos habituados, só que ligado à costura. Imagine-se um Masterchef da costura. Vai ser no chamado horário nobre. Estou sempre aberta a que me dêem oportunidade de fazer diferente, coisas novas. Mas há muito mais que gostava de pôr em prática.
Por exemplo?
Um daqueles programas de variedades à antiga, com dança, música, uma grande orquestra, mas nos tempos que correm é muito difícil porque não há produções que aguentem tudo isso. O dinheiro é um bem mais escasso do que há uns anos. Claro que gostava imenso de ter os dólares da Ellen DeGeneres para surpreender pessoas e ajudar famílias, mas não tenho. O que vale é que ainda tenho tempo [risos].
Qual é a principal ideia errada que as pessoas têm a seu respeito?
Sei lá, tem que lhes perguntar [risos]! Já me preocupei mais com isso do que agora. A idade vai-nos dando tranquilidade. Desde que tenha a minha consciência tranquila e que esteja feliz com a minha família e o meu trabalho não me preocupo, sinceramente, com o que os outros pensam. Podem achar que não dou atenção às pessoas mas isso é completamente errado.
* Esta entrevista foi originalmente publicada em Julho de 2017 na edição impressa da Time Out Porto