“Electrizante” e “dionísico” foram algumas das palavras usadas pela Bienal de Dança de Veneza para tentar descrever o trabalho de Marlene Monteiro Freitas, a quem atribuíram o Leão de Prata em 2018. Tentar, sim: intensamente polissémico, babélico e transformista, o universo coreográfico de Marlene finta constantemente qualquer tentativa de categorização e indexação. Uma cosmogonia muito própria, libertária e multiforme, como poderemos testemunhar em Guintche (2010), Jaguar (2016) e Mal – Embriaguez Divina (2020), os espectáculos em que se alicerça o ciclo de programação que o Teatro Municipal do Porto dedica à cada vez mais relevante coreógrafa cabo-verdiana, residente em Lisboa, a partir de quarta-feira 21 e até sexta 30.
Além da apresentação conjunta destas três peças (tentámos falar com a criadora sobre o seu mais recente espectáculo, Mal – Embriaguez Divina, mas dar entrevistas não é o seu forte), este Foco Marlene conta com o programa Abertura, Impureza, Intensidade. Olhares através da obra de Marlene Monteiro Freitas, composto por um ciclo de cinema, uma conferência e um simpósio com curadoria de Alexandra Balona. Segundo a investigadora e crítica de dança do jornal Público, este programa procura “dissecar” aquilo a que Marlene Monteiro Freitas chama de “denominadores comuns” do seu trabalho: a triangulação “abertura, impureza e intensidade”. “Mais do que conceitos, considero que são campos operatórios”, assinala.
“O trabalho da Marlene propõe uma certa desobediência no plano do conhecimento e da estética”, explica Alexandra Balona, referindo-se à questão da abertura no universo da coreógrafa. “Ao abrir, ao permitir dar entrada ao heterogéneo, ao híbrido, ao múltiplo, ao imponderável, aos opostos em simultâneo, o que ela faz é também rasgar com categorias. Ou seja, produz impureza.” E isso desencadeia “emoções, tensões, forças e uma ideia de pathos que têm a ver com a intensidade”, observa a investigadora. A presença penetrante e quase celular da música e do ritmo (sobretudo de origens cabo-verdianas) nas criações de Marlene Monteiro Freitas dão, precisamente, corpo a essa intensidade, que vai além da “ordem do racional, do dizível”, cruzando-a com uma visão muito particular da história da arte, da música e da antropologia da imagem.
Para Alexandra Balona, todas estas ideias de impermanência, impureza e hibridez, em boa parte antagónicas ao “pensamento eurocêntrico hegemónico”, fazem com que o trabalho da coreógrafa produza uma sensação simultânea e consensual de “desconcerto”, “inquietação” e “fascínio” entre o público e os programadores da dança contemporânea europeia. “Enquanto mulher branca portuguesa, interessa-me pensar no olhar do espectador, que nos teatros europeus ainda é maioritariamente branco, perante as figuras que a Marlene cria e toda a tendência complexa do white gaze para a exotização daquilo que vem de África”, reflecte Balona (que está, precisamente, a fazer uma tese de doutoramento em torno do trabalho de Marlene Monteiro Freitas).
Essas questões estarão também presentes no segundo momento do simpósio deste programa (domingo 25, Teatro Campo Alegre), em que se procura ensaiar uma “abordagem descolonial” ao universo da coreógrafa. Para tal, Alexandra Balona convidou a investigadora Ana Cristina Pereira, doutorada em cinema pós-colonial, e Nadia Yala Kisukidi, académica especialista em filosofia contemporânea ocidental e filosofia africana, e co-curadora da Bienal de Kinshasa 2021. Por sua vez, a primeira etapa do simpósio (sábado 24, Campo Alegre) é focada na imagem como veículo disseminador e condensador de sentidos e polissemias visuais, colocando em diálogo as criações de Marlene com o trabalho de pensadores e autores como o encenador Romeo Castellucci ou o historiador de arte Victor Stoichita, que fará aqui uma apresentação e cujas obras, como O Efeito Pigmaleão, influenciaram alguns espectáculos da coreógrafa.
Também é possível encontrar referências importantes para Marlene Monteiro Freitas no ciclo de cinema deste programa (quarta 28 e quinta 29, Rivoli), em particular os filmes Les Maîtres Fous, de Jean Rouch, e Les Statues Meurent Aussi, de Alain Resnais, Chris Marker e Ghislain Cloquet. O dia 28 centra-se em Cabo Verde, com Alma Ta Finka, de João Sodré, e Kmedeus. Spirit of a City, de Nuno Miranda, a partir dos quais se pode reconhecer alguns elementos culturais e sociais que, de certa forma, contaminam o corpo coreográfico de Marlene Monteiro Freitas.
No final de tudo, é muito provável que o trabalho da coreógrafa continue a ser difícil de categorizar, mas não de nos impactar e surpreender ainda mais. “Diria que a grande particularidade da obra da Marlene é uma imensa liberdade de poder condensar o mais impensável”, conclui Alexandra Balona. “Como ela diz, condensar, condensar, condensar até que a pele quase arrebenta.”