Coberta num manto melancólico, a música de Tiago Ferreira é pessimista, mas expressiva, capaz de encontrar beleza num caudal de tristeza. Ilha Digital, o novo registo que assina como Cavalheiro, é um disco sobre desolação, escrito dos pontos de vista de diferentes seres humanos que habitam o mundo atomizados. “Eu estava a tentar não me aborrecer a mim mesmo com os meus eternos pontos de vista, para isto não ser uma coisa fechada. Eu sinto-me numa ilha digital, mas há muitas ilhas digitais e eu tentei encontrar outras por aí. Cada canção fala sobre um ponto de vista diferente”, conta. “Andrajoso” é talvez o tema mais pessoal, sobre “alguém que tem receio de ser perseguido como um parvo ou um tonto, é um complexo de inferioridade”. Há também canções como “Mete Medo”, sobre a obsessão com a imagem, ou “Erra”, inspirado em 1984 de George Orwell, sobre mulheres que amargam por não encontrar o amor.
E depois há um tema chamado “Viagem ao Fim da Net”, que “demorou mais tempo a fazer do que alguns discos”. “É inspirado no livro Viagem ao Fim da Noite de Louis-Ferdinand Céline, sobre um homem que só olha para o mundo através dos seus próprios olhos. Como é um pessimista, só vê fealdade, tristeza e traição. Inspirou-me a pensar como seria se de repente acordássemos e não houvesse Internet e percebêssemos que o mundo é muito mais sinistro, que na verdade não conseguimos estar ligados a ninguém, que não temos a relevância que pensamos ter.” Mas por que é que demorou tanto tempo a ficar pronto? “Demorei muito a escrever a letra e depois, quando mudei de casa, perdi-a. E quando percebi que a tinha perdido – isto pode parecer um bocado dramático –, pensei que não ia ter capacidade para voltar a trabalhar nisto. Mas eventualmente encontrei-a no fundo de um casaco.”
Na verdade, todo o disco foi um processo demorado. Em finais de 2018, depois das apresentações ao vivo do disco Falsa Fé, começou de imediato a querer trabalhar em algo novo. Com Vítor Barros (Equations) na produção, o processo foi totalmente diferente. “Impus-me que não usaria a guitarra para compor. Utilizaria o piano e o sintetizador, sendo que eu não sei tocar piano nem sintetizador. A coisa era muito mais exploratória e retirou-me da zona de conforto, fui conseguindo construir canções que eram rudimentares em casa e depois no estúdio o Vítor ajudava a desembrulhar e a transformar em coisas mais completas e complexas. Entretanto, aconteceu a pandemia, depois tive um problema de perda de audição – que não foi uma coisa muito agradável –, mas depois conseguimos reatar e terminámos o disco.”
Há duas grandes inspirações em Ilha Digital. “Há uma musical, que é o Vítor. Ele impregnou-me de muitas coisas na maneira dele ouvir música. Na verdade, aquilo que ando a ouvir não tem nada a ver com o que ando a fazer, porque eu ouço Cartola, sambas e Nirvana. Na parte lírica, a inspiração é o que ando a ler. Neste disco eu tento abordar a contemporaneidade – estou a ser mais petulante do que devia – e eu gosto muito pouco de literatura contemporânea, mas vou buscar as ideias, o léxico. Isto é uma maneira muito pomposa de dizer que vou copiar coisas, vou buscar palavras e ideias de que gosto e depois espero que ninguém consiga perceber onde é que eu fui roubar aquilo.” Deixa lá, já tudo foi inventado. “E se não foi, não sou eu que vou inventar [risos]. Não tenho essa pretensão. Para mim a música é uma espécie de comichão, ou tenho ou não tenho. Posso passar um ano sem ter qualquer tipo de interesse em fazer música e depois numa semana escrever duas ou três canções. Sou um ser recolector em termos musicais, não sou propriamente um trabalhador. Às vezes não consigo, não tenho ideias.”
Um dos temas centrais do disco é a vertigem das novas tecnologias, a forma como estamos tão ligados mas cada vez mais desligados uns dos outros. “Eu tento, falhando, mas tento ser um homem do meu tempo. Tenho um computador, um telemóvel e uma televisão. Mas a questão nem é usar mais ou menos, é que o poder disto é absolutamente demolidor. Eu não estou aqui como um paladino, a dizer para deixarmos de usar o Instagram. Devemos viver na nossa época. O mais importante nisto, independentemente do meio, é a desumanização, é as pessoas empatizarem muito com tudo, mas de forma superficial. Na verdade, as pessoas não querem saber umas das outras, querem é consumir e aparecer e projectar felicidade. Tive um filho há pouco tempo e às vezes olho para ele e fico com receio. Os tempos estão a mudar tão depressa que acho que quando ele for um ser humano com personalidade, lá para os 17-20 anos, não vou ter nada em comum com ele. E isso assusta-me.”
“O Paul McCartney tem um disco chamado Memory Almost Full e eu às vezes sinto-me assim em relação à música. Não sou um melómano, não tenho disponibilidade mental para estar a ouvir música nova. E também não gosto particularmente de ir a concertos, não gosto de grandes aglomerados de pessoas. Sou bastante sociável, mas em doses pequenas. Sob pena de parecer um taberneiro, as artes performativas não são das coisas que mais me interessam.” Mas gostas de dar concertos? É que parece que vais ter um concerto a 6 de Novembro em Braga. “Sim, eu sei que é das coisas mais egoístas que se podem dizer. Eu gosto de dar concertos porque gosto de tocar a minha música, e gosto de a tocar alto. E sinto-me muito grato a quem está disposto a despender o seu tempo e dinheiro para me ver a fazer figuras tristes em cima de um palco.” ■
Concerto: Gnration (Braga). Sáb 6 de Novembro, 18.00. Bilhetes: 5€