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©João Octávio Peixoto

Entrevista aos Clã: “O que me faz falta é estar no palco”

Os Clã tinham um disco pronto para sair quando a pandemia bateu à porta. Falámos com Manuela Azevedo e Hélder Gonçalves através de um ecrã sobre os distanciamentos, as incertezas do futuro e as saudades do palco.

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Manuela Azevedo e Hélder Gonçalves vivem num “cantinho sossegado”, numa aldeia em Vila do Conde. Já estão habituados a uma rotina caseira e confinada. Vivem no meio da natureza, num terreno onde zurra uma burra e onde podem apanhar sol e laranjas. Foi aqui que gravaram o novo álbum Véspera, que sai à rua a 22 de Maio. Apesar de ter sido criado nos últimos três anos, nele paira um prenúncio destes tempos de pandemia. É a primeira vez que os Clã lançam um disco e não podem apresentá-lo em frente a um público. Para uma banda que se extravasa no palco, isso é complicado.

Como está a correr a vossa quarentena?

Manuela Azevedo: Não está mal, na verdade. Nós vínhamos de um tempo assim caseiro. Como estávamos em estúdio a gravar, já estávamos habituados a esta rotina de estarmos confinados, por isso acaba por não ser assim uma grande mudança. Vivemos numa aldeia no concelho de Vila do Conde, é também aqui que gravamos. O nosso cantinho é bastante sossegado e isolado. Podemos apanhar sol, apanhar laranjas… Para estes dias de confinamento é um privilégio ter o que nós temos.

Hélder Gonçalves: Pela primeira vez na nossa carreira, estamos a lançar um disco e não podemos ir na semana seguinte para a rua ou fazer um concerto. Isso sempre foi muito importante para nós, os discos serviam de lançamento a uma digressão. E neste momento não vamos poder ir para a estrada. Para nós, é muito estranho.

Esta é uma boa altura para lançar este disco?

Manuela: Não fazia sentido deixar este disco mais tempo parado.

Hélder: Estamos a trabalhar neste disco desde 2017. Em 2018, começámos a fazer as gravações, é um processo longo.

Manuela: É uma razão egoísta, é a necessidade de partilhar o que temos nas mãos. Além disso, é um trabalho que não foi feito de propósito para esta ocasião, mas traz em si uma maneira de olhar para o mundo e de pensar o mundo que faz todo o sentido nos dias que vivemos agora. Estes dias de pandemia são dias estranhos, mas todas as coisas que estão associadas são males que já vinham antes. Por exemplo, a maneira como incompreensivelmente temos líderes como o Trump ou o Bolsonaro a lidar com esta pandemia, é algo que já se sentia na forma como eles lidavam com outras coisas.

Os Clã colaboram com pessoas da música, da literatura, da ilustração e das artes performativas. Que importância têm todas estas colaborações? O todo é maior que a soma das partes?

Manuela: Exactamente, tem a ver com isso. Aquilo a que chegas é sempre maior do que o ponto de partida, não é só juntar o trabalho destas pessoas, é articular esse trabalho, é discutir todos, é deixarmo-nos contaminar uns pelos outros. Na parte da criação em si há uma parte mais solitária, mas, a partir da altura em que desafiamos os nossos parceiros de escrita, logo aí já há uma abertura de mundo, de olhares e perspectivas sobre aquele ponto de partida. E à medida que vais juntando mais gente, como o André da Loba a propor um outro olhar sobre as canções, isso também te vai ajudar a pensar no que vais querer levar para o palco. Neste trabalho temos o Victor Hugo Pontes e a Cristina Cunha a assinar os figurinos, tudo isto é uma criação colectiva. Isso foi algo comprometido por estes dias mais estranhos, mas o Zoom acabou por ajudar. [risos]

Os Clã têm uma abordagem interessante à electrónica...

Hélder: Temos dois teclistas que usam teclados analógicos, que são instrumentos muito específicos, há um trabalho muito complexo a volta deles. Às vezes estamos semanas à volta de um teclado para escolher o sonzinho que faz “ping”. As possibilidades são muitas, é complicado por causa disso. Por outro lado, a música que ouvimos é muito variada e gostamos do contraste de ligar coisas mais acústicas do rock e da pop com elementos mais inesperados. Não olhamos para os teclados como instrumentos de música electrónica, mas como coisas palpáveis que podemos mexer e andar à procura e burilar à volta daquilo.

O palco é o mundo dos Clã. Como é que estão a lidar com esta incerteza do regresso aos palcos?

Manuela: É muito mau. Não conseguimos estar os seis juntos, não podemos tocar juntos, o que é fundamental para manter a saúde de qualquer colectivo. Especialmente para nós, porque aprendemos das próprias canções ao estar com elas em palco, ao tocá-las inúmeras vezes. É terrível ter um trabalho novo na mão e não poder estar em cima do palco a defendê-lo e a ver a reacção das pessoas ali à frente. Vamos ver como se regressa a alguma normalidade, mas é óbvio que vamos passar por situações muito estranhas. A experiência em palco de ter as plateias separadas, as pessoas com a máscara no rosto e só consegues ver os olhinhos, com medo de se manifestarem e saltarem e dançarem, porque vão invadir o espaço do outro. Tudo isso vai tornar a experiência muito estranha. Esta auto-consciência do outro, do distanciamento, tudo isto é uma aprendizagem muito estranha, quanto mais naquilo que devia ser uma celebração de estarmos todos juntos. Vão ser tempos tramados. Na parte da sobrevivência, ainda mais complicado é. Esta suspensão de toda a gente que está relacionada com o mundo do espectáculo, associada a uma grande precariedade na área da música, porque não há subsídios ou contratações... Temos tanta gente que trabalha à volta do espectáculo em risco de sobrevivência, sem rendimentos. O reatar de alguma normalidade disto tudo vai ser demorado. É importante estarmos todos muito antenados, muito solidários, muito exigentes em relação ao nosso próprio governo para podermos ultrapassar isto sem muitos danos, sem muita gente ficar pelo caminho.

O que vos preocupa mais no futuro?

Manuela: Esta situação podia ser uma ocasião para melhorarmos enquanto espécie. Percebermos que é importante sermos responsáveis uns pelos outros, ter um Serviço Nacional de Saúde que funcione, ter solidariedade social. Que não faz sentido uma vida sem o outro, sem uma comunidade. Que ter um planeta menos poluído é bom e é possível. Essas coisas são lições fundamentais, mas eu temo que a gente esqueça, assim que regresse à normalidade. Era importante que a dureza daquilo que estamos a passar servisse para alguma coisa. Mas o que me preocupa mesmo é perceber até que ponto o controlo sanitário não vai alterar demasiado uma convivência normal e natural entre os humanos. Se não nos vamos tornar em coisas assépticas que desistiram completamente do toque, do afecto. É muito estranho pensar no risco de mudar comportamentos que são essenciais em ser-se humano. Isso deixa-me algum receio pelo futuro.

Hélder: E as pessoas que perderam empregos, especialmente aquelas que já estavam numa situação difícil ou numa profissão que dependia de recibos verdes. Eu sei que muitos colegas nossos artistas estão com dificuldades, mas ainda conseguimos fazer aquilo de que gostamos, de alguma forma. Podemos tocar em casa, podemos gravar. Mas um técnico que faz luzes, que leva o material, que afina guitarras e ganhava a vida com isso, agora não há nada que possa fazer. E são pessoas valiosíssimas, mas não podem fazer o seu trabalho. Acho que o governo devia ser eficaz a tratar disso, mas para isso é preciso os políticos perceberem do que estão a falar. A sensação que temos é que o governo não percebe bem o nosso mundo. As pessoas não têm ideia de tudo o que é preciso para fazer um concerto, quanto é que no fim um artista ganha. Ao nível político, um ministro ou secretário de estado tem que perceber o que se está a passar, senão também não sabem como ajudar.

Os concertos online gratuitos vão desvalorizar os concertos normais?

Hélder: Eu acho que não se devem fazer concertos online gratuitos. No momento em que os artistas ficaram sem nada, a única coisa que têm é esta plataforma online, que pode ser a única fonte de subsistência nos próximos meses. Portanto nós não podemos – já não devíamos antes, mas especialmente neste momento – escancarar e oferecer tudo. A música já perdeu bastante valor porque as pessoas podem ouvir música sem pagar no YouTube ou no Spotify, o streaming já desvalorizou a música como algo em que tens que investir e pagar. O único sítio onde as pessoas faziam isso era nos concertos, pagavam bilhetes. E se neste momento também desbaratamos isso como artistas, estamos a dar tudo e cada vez a ficar com menos soluções de sobrevivência. Uma coisa é oferecer cinco músicas, outra coisa é disponibilizar um concerto inteiro. Isso tem um valor que não podemos desperdiçar, senão as pessoas acham que fazemos as coisas facilmente, que não nos custa nada, que não há dezenas de pessoas a trabalhar para que uma coisa destas aconteça.

O que é que mais querem fazer quando o confinamento terminar?

Hélder: Nós temos sorte por estarmos juntos em casa, mas queria estar com os amigos, a família, brindar com um copo, entrar num restaurante. Há muita coisa que nem estamos a dar valor agora e que vamos valorizar depois.

Manuela: Sim, mas o que me faz mais falta neste momento é mesmo estar no palco. ■

Clã - Véspera

  • 5/5 estrelas
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Os Clã não sabem fazer maus discos. Com uma das mais imaculadas discografias da música nacional, mostram um entusiasmo raro em bandas veteranas. Em Véspera, não têm medo de encarar as canções nem de fugir das suas curvas, desconstruindo as mecânicas da canção pop. Este é um disco que canta o coração e a carne, mas também lembra que o mundo já era um lugar estranho. Fala de um planeta doente e da ameaça que paira no ar. Das pandemias do pânico, da ansiedade e da depressão. Da necessidade de parar e pensar, de dançar até cair, de voar até escapar.

Na violenta ternura da voz, na mestria das melodias e na dimensão orquestral dos arranjos, os Clã são sábios e sensíveis. Crescem em cada palco, com cada colaboração. Abrem diálogos com as várias artes e deixam-se contaminar pela sua alquimia. As letras de autores como Carlos Tê, Arnaldo Antunes, Regina Guimarães, Samuel Úria e Capicua têm uma intérprete à altura. Manuela Azevedo é capaz de emocionar com um sopro do seu coração, enquanto Hélder Gonçalves a abraça e electrifica com o seu imaginário instrumental. Ela deslinda e apropria as palavras de outros. Respeita e respira a poesia. Resguardada nos poemas, interioriza-os e inteira-se neles. ■ Ana Patrícia Silva

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