Música, Filipe Sambado
©Diogo Vasconcelos & XipipaFilipe Sambado
©Diogo Vasconcelos & Xipipa

A música portuguesa a explorar e a gravar-se a si própria

Longe vão os tempos em que era preciso gastar dinheiro num estúdio profissional para trazer música ao mundo. Hoje, qualquer quarto ou garagem pode ser um estúdio. Falámos sobre auto-gravação com quem percebe do assunto.

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Das gravações caseiras de Brian Wilson, sobre as quais foram erguidos álbuns como Smiley Smile, Wild Honey ou Friends dos Beach Boys, ao McCartney (1970) de Paul McCartney, gravado na casa do ex-Beatle, não é de agora que os músicos fazem da sua casa estúdio. E se, dantes, isso estava ao alcance de poucos, à medida que a tecnologia evoluiu, a auto-gravação democratizou-se. Hoje, qualquer quarto pode ser um estúdio e todo o mundo pode fazer e partilhar a sua música quase instantaneamente. Basta um computador, uma ligação à internet e vontade.

Sem exagero: alguma da melhor e mais fresca música portuguesa dos últimos 20 anos foi feita assim. Em casas e estúdios improvisados, isoladamente ou por grupos de amigos que se entreajudavam, encorajavam e aprendiam uns com os outros, e por fim partilhada por editoras e colectivos como a Merzbau, a FlorCaveira, a Cafetra ou a Príncipe, entre tantas outras. Sem grandes planos nem ambições, apenas porque aquela música estava nas suas cabeças e era preciso “torná-la real”, como diz, e bem, Leonardo Bindilatti, produtor fulcral de boa parte da música da Cafetra, além de músico e compositor. E porque queriam “autonomia” – palavra de Filipe Sambado, que muito antes de subir ao palco do Festival da Canção tocava e gravava a sua música e a dos amigos.

Falámos com meia dúzia de músicos sobre os desafios, as vantagens e os porquês da auto-gravação e reproduzimos os seus testemunhos, na primeira pessoa. Lembramos as palavras das Pega Monstro: “Se isto não é música/ então faz tu uma canção”. Parece simples. E pode sê-lo.

Conan Osiris

“Comecei a fazer música sozinho na infância, quando gravava a voz num gravador de cassetes, e mais tarde evoluí para clips de áudio do MSN. Só depois conheci o Fruity Loops, onde comecei a aprender composição de uma forma muito visual. Nunca fui muito à bola com tutoriais, por isso tudo o que aprendo demora muito mais tempo e é simultaneamente muito mais auto-exploratório. Auto-gravar-me permite-me tomar o meu tempo a desconstruir o nojo que sinto não só em relação à minha voz, como a mim próprio. Permite-me também sintonizar-me com o fenómeno peculiar de transformar electricidade em ondas de som palpáveis = milagre da criação da matéria. Eu sempre fui músico, mas não tinha nenhum contacto musical na família ou amigxs, então simplesmente fazê-lo foi o único caminho. É o que diria a alguém a começar: simplesmente faz. Seja com tutoriais ou não, companhia ou não. Liga-te a ti mesmx e cria.”

Filipe Sambado

“Comecei a tocar, a gravar e a compor quase ao mesmo tempo. Costumava gravar com o João Pratas, que é um amigo. Mas entretanto precisei de gravar sozinho as minhas ideias e fui trabalhar para pagar um curso (dinheiro mal gasto) e material (dinheiro bem gasto).

O meu processo de criação, por ser durante algum tempo um músico limitado tecnicamente, consistia num trabalho de camadas. E penso ainda um bocado como se estivesse num workflow de um DAW (digital audio workstation, no meu caso é o Pro Tools, mas são todos iguais e têm evoluído uns com os outros), com pistas e secções. Isto, por um lado, atrasou-me na construção mais elementar da canção. Por outro lado, ajudou-me no trabalho de arranjos, harmonias contra melodias, etc.

[Fazer as coisas sozinho] tem um lado mau e um lado bom. O isolamento criativo permite-me bater com a cabeça nas paredes sem ter de prestar contas, mas leva-me algumas vezes a processos mais morosos e cansativos.”

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Leonardo Bindilatti

“Sempre gostei de música e comecei a fazer música ainda puto. Em 2008 criei a Cafetra com os meus amigos, porque queríamos divulgar a nossa música. Desde aí, ganhei interesse na produção e comecei a gravar e misturar a minha própria música, porque não tinha os meios para pagar um estúdio onde pudesse fazê-lo, mas queria ouvi-la e torná-la real. Quando tinha 13 anos, tocava guitarra eléctrica no quarto, praticamente todos os dias, e gravava com o microfone do computador. Na altura, usava o Audacity, que é um programa de gravação e produção grátis, e ainda o usei durante alguns anos. Depois, um amigo mostrou-me o Ableton Live. Gostei logo dele porque era muito fácil de usar e criar e não era tão limitado como o Audacity. É o que uso até hoje, tanto para gravar, como para compor.

Para mim, fazer música sempre foi um processo de aprendizagem e experimentação e acho que o mais interessante de o fazer pelos meus próprios meios é que não há limites. Sinto que a composição e a mistura não são etapas diferentes, eu componho ao mesmo tempo que misturo e isso para mim é estimulante. Talvez o maior desafio seja conseguir concluir os projectos, porque hoje é tão fácil fazer música – basta um computador e uns fones – que, quando se começa, surge um entusiasmo que te leva a iniciar mil e uma ideias, mas que nunca são finalizadas.”

Luca Argel

“Quase sempre gravo em casa, com um setup que fui aprimorando ao longo dos anos (tanto o equipamento, quanto o posicionamento dentro de casa). O software que uso é o Logic, e eventualmente o Reason, quando preciso de trabalhar com electrónica, samples e midi. Em relação a equipamentos, tento ficar no mínimo necessário: um microfone condensador, um pré-amplificador, uma placa de som USB e dois monitores. Não preciso de muito mais que isso, mas sempre que posso faço upgrade para modelos melhores. Isso de equipamentos é um poço sem fundo, uma vez que se entra, estamos sempre querendo um modelo melhor, e quando conseguimos descobrimos que existe outro ainda melhor... Não acaba nunca!

O primeiro desafio é aprender a usar as ferramentas por conta própria, desde a coisa mais básica, como ligar cabos, até usar as funcionalidades todas de um software de gravação profissional. Parece estúpido, mas outra coisa peculiar de se gravar em casa é que precisamos de estar concentrados na música quando vamos tocar ou cantar, como é claro, mas ao mesmo tempo também somos nós que temos que apertar o rec, monitorar os níveis de volume da gravação, apertar o pause quando terminamos, e depois ouvir o resultado pra ver se não é preciso fazer um novo take. Esse processo todo exige um nível de paciência e de concentração muito grandes, o que consome mais rápido as energias. A vantagem é que dentro de casa temos toda a autonomia para gerir o tempo, enquanto num estúdio temos horas contadas. Mesmo assim, a depender dos vizinhos, essa autonomia de horário pode estar condicionada...

[Se gravasse num estúdio profissional] as composições seriam as mesmas, mas sem dúvida elas soariam diferentes. Não só porque um estúdio está mais bem equipado. Eu acho que a grande vantagem que um estúdio profissional tem sobre um home studio são os profissionais que trabalham lá, e não o equipamento. Às vezes, mais um par de ouvidos é tudo o que basta para revelar problemas e soluções que nós sozinhos não conseguimos enxergar. Ter um bom técnico de estúdio a trabalhar connosco nos tira muito peso das costas na hora de gravar, e permite que o músico interprete com mais tranquilidade, mais espontaneidade, o que acaba por se reflectir no som. Acho que essa seria a grande diferença.”

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Nídia

“Costumo fazer música na maior parte das vezes com o meu PC, o FL studio e o Maschine. Por vezes, posso construir sons com a Maschine Jam da Native Instruments ou com um teclado/ piano midi. Acho que não existe vantagens ou desvantagens por fazer música sozinha. Estamos numa era em que as coisas são mais fáceis de fazer. Hoje, para fazer um som ou gravar por cima do som não necessitamos de um grande estúdio com engenheiro de som.”

Odete

“Costumo gravar a minha música com um gravador simples (para fazer samples) e gravo a voz com o gravador ou com micro do computador, porque não tenho outro. Para produzir e compor, uso o Ableton – uso este software porque a própria Ableton mo ofereceu quando eu lhes mandei um e-mail a explicar a situação precária dos artistas aqui em Lisboa e como precisava do software não tendo dinheiro para o pagar.

Gravar música sozinha é uma coisa muito ambígua – por um lado, há um certo conforto por poder estar à vontade e gravar o que eu quiser, como quiser, mas também há o problema de eu ainda não dominar completamente a masterização de voz e as ferramentas para a deixar mais "polished". Contudo, é uma questão de tempo até aprender isso tudo. Acho que a minha música seria diferente, se gravasse num estúdio profissional. Teria uma qualidade de áudio melhor (por ter instrumentos mais profissionais), mas não alteraria nada em termos de composição e estrutura. Não tenho profissionais à minha volta, mas tenho amigos que me ajudam a perceber as ferramentas.”

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