Na mitologia, as sereias são criaturas híbridas, normalmente meio mulheres, meio peixes. Na música portuguesa, os Sereias são igualmente híbridos, mas de punk-rock e free-jazz. É, obviamente, uma simplificação – nas suas canções o punk está presente sobretudo em espírito; há ecos do psicadelismo electrónico dos Silver Apples, do krautrock dos Can, do pós-punk dos Pere Ubu, do rock industrial dos Swans – mas termos como punk-jazz ou free-rock são bons atalhos para descrever o que se ouve nos seus dois álbuns, O País A Arder, de 2019, e o recém-editado disco homónimo ou, nas palavras da banda, “sem título”. O colectivo de geometria variável – há membros que entram e saem, com liberdade e sem compromissos – devia ter começado a apresentar as novas e incendiárias canções há dez dias, só que um surto de gripe obrigou a cancelar umas datas e a adiar outras. Em princípio, devem finalmente iniciar a tour no domingo à tarde, na Sala Estúdio Perpétuo.
O novo álbum não destoa do que veio antes. Estão lá todas as influências anglo-saxónicas evocadas no parágrafo anterior e mais algumas, como os Mão Morta, de quem os Sereias podiam ser bastardos a quem deram um saxofone (e cujo vocalista, Adolfo Luxúria Canibal, assina o texto de apresentação do disco). O seu som é um espelho dos interesses de sete músicos – João Pires na bateria, Tommy Hughes no baixo, Sérgio Rocha na guitarra, Nils Meisel nos teclados, Ra-Yacov nos sopros, António Pedro Ribeiro e Arianna Casellas nas vozes – de diferentes gerações e proveniências, quase todos com outros projectos musicais e artísticos, que se cruzaram nas margens de um Porto cada vez mais gentrificado e “trazem para o contexto do grupo ideias de outros lados”, segundo o fundador João Pires.
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“[A nossa música] é fruto da improvisação. No álbum tentamos reproduzir o que fazemos durante o resto do ano, nos ensaios e ao vivo. [Em estúdio] fazemos quase sempre sessões de 45 minutos a uma hora em que tocamos como se estivéssemos num concerto. E depois registamos o que acontece. Só que agora, como as condições não eram ideais, a voz foi toda gravada à parte e nalgumas sessões nem todos os músicos estavam presentes. Portanto, o que tens no álbum é 85% de sessões de improvisação e depois a voz e alguns instrumentos pontualmente editados”, descreve o baterista. Passado nem um segundo, a sua atenção desvia-se para os concertos e para a maneira como as faixas evoluem ao vivo. “Acho que nunca tocamos uma canção da mesma forma duas vezes. Cada tema que ouves num concerto é um objecto único, exclusivo para o público que está presente naquele dia.”
Talvez por estar habituado a encaixar os mesmos poemas em temas que se transformam de concerto para concerto, não é um problema que o poeta António Pedro Ribeiro e os instrumentistas não tenham gravado Sereias na mesma sala, nem que isso se note no disco. A relação entre os instrumentais (cuja autoria é creditada a toda a banda) e os textos de Sereias (assinados por A. Pedro Ribeiro) sempre teve uma dimensão paradoxal. Por um lado, parecem e podem existir independentemente uns dos outros; por outro, combinam bem e fazem mais sentido juntos. A energia das canções pede determinadas palavras, e o declamador sabe conjugá-las onde fazem falta, tornando de uma assentada os poemas e as músicas mais memoráveis. Isto acontece de uma forma quase instintiva. João Pires dá um exemplo: “Nos concertos, se a parte instrumental está mais intensa, o Pedro declama muitas vezes o ‘Primeiro Ministro’, que é um poema que exige uma certa intensidade.”
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O “Primeiro Ministro” a que o baterista se refere foi um dos singles do registo de estreia. Começa assim: “Quero o primeiro-ministro/ para comer ao pequeno-almoço/ quero um trabalho/ para mandar para o caralho/ quero um défice/ para meter no cu”. É um dos vários textos políticos de O País A Arder. Paralelamente à música e à poesia, António Pedro Ribeiro tem um longo historial de militância política. Passou pelo PSR (um dos partidos que esteve na génese do Bloco de Esquerda), foi candidato autárquico pelo PCTP/MRPP e tentou concorrer à Presidência da República. Hoje diz-se anarquista. “São as minhas contradições. Quando estive no PSR estava lá convictamente. Quando estive no MRPP estive lá convictamente, embora tivesse as minhas dúvidas. Mas hoje considero-me anarquista. Não acredito nos partidos, nem no sistema parlamentar”, justifica.
“Considero-me contra o Estado, contra a autoridade. E sobretudo a favor da liberdade, que é essencial e está a ser amordaçada muitas vezes pelo sistema, por este capitalismo de controlo e vigilância, por estas coisas que nos fazem a cabeça todos os dias. É importante dizer que a vida não é isto. Que é preciso amor, que é preciso poesia, que é preciso arte, que é preciso gozo também. Que a vida não se pode resumir à compra e venda e ao trabalho”, conclui. E considera Sereias uma continuação do trabalho político começado há anos? “Não. É óbvio que há alguma ligação, mas isto é um trabalho artístico.” Mesmo reconhecendo que “a música é uma boa forma de tomar posições políticas”, não parecem ser essas as suas principais inquietações. Pelo menos agora, pelo menos no novo disco.
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Canções como “Dinheiro” ou “Coisa” retêm uma dimensão política, no entanto já não se comem primeiros-ministros ao pequeno-almoço. Também não há referências a um país a arder, nem a Otelo e às Forças Populares 25 de Abril. “Foi algo que aconteceu naturalmente”, segundo António Pedro Ribeiro. “Calhou serem estas as canções. Claro que também tentei introduzir novos temas, como o desespero, o tédio, a depressão, as fobias sociais que se vivem na sociedade contemporânea.” Problemas que foram amplificados pela pandemia e os eternos confinamentos de 2020 e 2021, todavia “a maior parte destas letras são anteriores a isso”, garante. “É mesmo um mal-estar existencial. A falta da mulher, a solidão”, remata. João Pires intercepta a palavra: “Já é uma condição permanente”.
Sala Estúdio Perpétuo. Dom 17.00. 7€.