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A exposição que é uma memória do confinamento para o futuro

Escrito por
Maria Monteiro
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No futuro, o insólito destes dias não passará de uma memória distante, varrida para os confins dos arquivos de jornais e da Internet. O isolamento que transformou a nossa casa, simultaneamente, em prisão e abrigo, será apenas conhecido através dos livros que se escreveram, das músicas que se compuseram ou das obras de arte que se criaram. É, precisamente, para “guardar a memória de um momento histórico e as suas repercussões artísticas na contemporaneidade” que surge Right Now, exposição virtual da Galeria Underdogs, em Lisboa, que está actualmente a decorrer online.

“Interessava-nos ter uma resposta dos artistas em relação ao que se está a passar”, contextualiza Pauline Foessel, curadora. Para isso, convidou vários artistas que já tinham colaborado com a Underdogs a criar uma obra que reflectisse a actualidade e o seu próprio confinamento – apenas com os materiais que tinham em casa. “Alguns artistas [urbanos] viajam muito para fazer exposições ou pintar paredes”, problematiza. “Daí o desafio.”

Para Mário Belém, um dos 34 artistas nacionais e internacionais que participam em Right Now, o novo normal não é novidade. Antes da pandemia, esteve cinco meses em casa a preparar uma exposição que ia ter na Underdogs e que teve de ser adiada. “A minha rotina passa muito por ficar aqui enfiado”, afirma. Uma vez que tem o ateliê em casa, não se viu condicionado pela logística. O pior foi trocar os murais em grande escala pelo “pincelinho mais pequeno” que tinha à mão. 

Exposição 'Right Now' da Galeria Underdogs
'Take the second turn on your right, keep on going straight ahead and you’ll end up absolutely nowhere' de Mário Belém© Mário Belém/Underdogs

Lançou-se ao pequeno formato, munido de tintas acrílicas e blocos de madeira. A imagem final combina a fantasia das suas narrativas visuais com a apatia do presente. “É engraçado como isto mexeu com a nossa noção de tempo”, comenta sobre os vários relógios que apontam para a mesma hora. “Já é indiferente, às tantas não sabes se é segunda ou quinta”.

A simbologia está muito presente no trabalho de Mário Belém. Exemplo disso são os animais desproporcionalmente grandes, em referência a uma “doença parecida a muitas outras, mas que se calhar é mais um papão” ou a Nossa Senhora tombada no chão, que alude “à fé [colectiva] que está a ser posta em causa”.

Destaca-se, ainda, a ausência das habituais cores vivas, já que se inspirou nos “mestres holandeses do século XVII para obter um tom mais melancólico”. Também Tamara Alves capturou a  melancolia deste tempo numa pintura que mostra a parte superior do rosto de alguém que parece olhar pela janela. “São tempos sensíveis, por isso queria fazer algo esperançoso”, revela a artista, cujo trabalho inclui desenho, pintura ou grandes murais.

Contudo, é na rua que tem desenvolvido “um trabalho de desapego emocional” que, neste caso, a levou a rasgar a parte de baixo do retrato para ficar mais satisfeita com ele. O rasgão, feito depois de “um acidente com a tinta” no esboço, é um detalhe que ganha força se pensarmos que, actualmente, essa é a parte do rosto dos outros que não vemos.

“Não foi propositado, mas pode estar ligado [inconscientemente]”, nota, face à estranheza de “não ver os sorrisos das pessoas”. Para Tamara, trabalhar em casa foi voltar à altura em que não tinha ateliê. Está acostumada a “passar temporadas” no interior, por isso a reclusão não foi um choque. Pegou nas aguarelas, reaproveitou papel e pôs mãos à obra.

Exposição 'Right Now' da Galeria Underdogs
Vítor Reis criou dois objectos para a exposição© Vítor Reis/Underdogs

Para Vítor Reis, o efeito do confinamento na criação “é algo perverso”. “Se se prendem os movimentos, os artistas têm de dar os seus gritos de alguma maneira.” O seu, em particular, é inundado de humor, ironia e trocadilhos e materializa-se, sobretudo, em cerâmica. Desta vez, partiu da famosa frase “Home sweet home” (“Lar, doce lar”) e adaptou-a a “Home shit home” (“Lar, merda de lar”). “É quase dizer que a tradição já não é o que era”, explica, já que “[estar confinado] trouxe vários problemas sociais e familiares”.

O conceito desdobrou-se em dois objectos: uma fotografia de uma bandeira de papel em que “a palavra ‘shit’ está opaca e as outras deixam ver o céu”, numa “alusão poética de que talvez a nossa casa seja lá fora”, e um prato, peça tradicionalmente decorada com frases, que “ganhou agora uma nova reflexão”. 

Right Now é uma oportunidade de ver “meios e técnicas que os artistas não trabalham muito ou que trabalham apenas num rascunho inicial”, sublinha Pauline Foessel. O alinhamento inclui, ainda, Vhils, ±MaisMenos±, Wasted Rita, Cássio Markowski, Clemens Behr ou Ernest Zacharevic. A exposição pode ser vista até 1 de Junho.

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