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Julien Dubois é um pianista em fim de vida. Amargurado e atormentado por um sucesso que não pretendia, obtido através de uma espiral de concessões ao zeitgeist, ao gosto popular e ao dinheiro; consumido pelo vício, pela doença e pelos fantasmas que vem cultivando desde a infância. Vive em clausura, com a governanta Marguerite e o gato Maurice. “Detesta todo o tipo de visitas. Especialmente de jornalistas.” Mas a resiliência de Adeline Jourdain, que se apresenta como estagiária do Le Monde, cativa Dubois, que acede a contar-lhe a sua vida – sob a condição de que o artigo não seja sobre ele. A história que tem para contar é a de François Samson, “o melhor pianista de todos os tempos”, seu conterrâneo e contemporâneo, filho de um funcionário das limpezas do teatro, onde o ouviu tocar pela primeira vez, num concurso em 1933, e cujo génio ele, Julien, promessa do piano provindo de uma família abastada, passou a admirar e a invejar, numa frustração insolúvel.
Em Balada para Sophie, que chegou a 18 de Setembro às livrarias, Filipe Melo e Juan Cavia abdicam de um antagonista, como os que existiam em As Aventuras de Dog Mendonça e Pizzaboy (2010-13) ou Os Vampiros (2016). “Neste livro, como uma das personagens refere, o pior antagonista está dentro de nós”, diz à Time Out o argumentista português. “Nos nossos primeiros livros, como eram histórias de aventuras, existia um conceito mais naïf de antagonista. De livro para livro, fomos trabalhando para deixarem de ser caricaturas.” Até que o vilão, para Julien Dubois, é ele próprio. “É um conceito muito real e muito assustador. Muito pessoal, também. A luta interna é a mais difícil de travar, porque o vilão nunca nos abandona, está sempre connosco e conhece-nos melhor do que ninguém.” François Samson é igualmente atormentado, mas pelo seu perfeccionismo obsessivo. Samson não faz ideia da rivalidade nutrida pelo outro. O combate é Dubois contra Dubois.
As 320 páginas desta novela gráfica (que a Tinta da China edita em papel de qualidade e capa dura, com o preço nos 36€) são, por isso, uma inevitabilidade. É a obra de maior fôlego da dupla, mas não se trata de ambição gratuita. Era o espaço necessário para “explorar e desenvolver melhor a densidade e complexidade das personagens e da própria condição humana”. Também não é um corte com o passado nem um sobressalto na relação com os leitores. Filipe Melo garante que, apesar das aparentes dissemelhanças, os livros que produziu com o director de arte e ilustrador argentino Juan Cavia têm “muitas parecenças, tanto na estrutura como na intenção”. “Temos aprendido o que funciona melhor para nós com os anos, e cada livro que fizemos não teria sido possível sem o anterior. A própria confiança que fomos criando com os leitores permite-nos ter mais liberdade a contar histórias – deixar mais espaço para que cada pessoa que nos lê tire as suas conclusões, não impondo as nossas. Acho que esse é o nosso objectivo principal, nesta fase.”
Além dos dois pianistas oriundos da ficcional Cressy-la-Valoise e da passagem do tempo (seis décadas entre o concurso que pôs frente a frente os infantes Samson e Dubois, e o encontro deste com Adeline, em 1997, demorando-se no período da II Guerra Mundial e nos actos de resistência, sobrevivência e colaboracionismo que o definiram em França), Balada para Sophie é marcada pela presença, e a força, das personagens femininas. “As mulheres foram sempre tratadas como personagens secundárias, como objectos para que os protagonistas masculinos pudessem brilhar e triunfar. É profundamente triste essa desigualdade. Faz com que uma rapariga, quando cresce, fique com a ambição diminuída por falta de exemplos inspiradores”, lamenta Filipe Melo, que faz avaliação idêntica para os outros meios em que se movimenta, o jazz e o cinema. “Isso deve mudar, nem que seja à força. Essa igualdade tem de existir. Neste livro, sem querer revelar a história, essa presença e essa força são essenciais; são o seu verdadeiro motor.”
A música é o protagonista de que falta dar conta. Não fica reduzida a cenário, pano de fundo. Melo diz, aliás, que este livro é sobre “a procura de identidade” e “a relação que se cria com a música”. “O fenómeno musical – a transmissão de ideias e de emoções pela música, a forma como os músicos comunicam entre si sem palavras – é um fenómeno mágico, transcendente, inexplicável. Digo-o sinceramente, é algo que sinto e que não estou a dizer para fazer número.” Mas a complexidade de sensações que esse fenómeno provoca “consegue levar muitos músicos extraordinários ao desespero e à desistência”. “Um pianista incrível que conheço um dia desabafou comigo e disse: ‘Nesta profissão ficamos muito conscientes das nossas fragilidades’. Isto fez muito sentido para mim.” Um músico pode levitar, descer às profundezas ou, se a oportunidade surgir, se o pássaro pousar no parapeito na hora certa, se esperar sem saber que espera, talvez consiga redimir-se – e iniciar um novo ciclo. A redenção “é uma ideia que sempre me atraiu e que é talvez o que todos os nossos livros têm em comum”, afirma o argumentista. “Talvez por sentir que é algo que deseje tanto para mim que acaba por se traduzir nestas histórias.”
Balada para Sophie vai ser editada nos EUA em 2021 e vai partilhar o catálogo da prestigiada Top Shelf Productions com Alan Moore, Craig Thompson ou George Takei. “Não tínhamos nenhuma cunha, nenhum contacto. Foi um envio de um PDF para um email geral, e recebemos um mail do nosso novo editor, Chris Staros, que nos disse que há muito tempo que uma candidatura assim não lhe prendia a atenção da primeira à última vinheta. Isto foi o melhor elogio que podíamos ter recebido, e deu-nos muita motivação, especialmente durante a pandemia, em que não sabíamos o que iria acontecer com este livro”, congratula-se Filipe Melo. Ainda antes de sair em Portugal, e além dos EUA, o livro tinha edição garantida em França e na Polónia – um lastro internacional que, explica Melo, “permitiu que finalmente isto se parecesse com algo mais profissional, menos amador”. “Acredito que um dia vamos ter uma indústria de banda desenhada, com produção e qualidade que sustente os autores, apenas porque há leitores que os querem ler e que compram os livros. Quando comecei a fazer BD, disseram-me que isto ia ser impossível.”
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