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A última semana da 44ª edição do FITEI conta com várias estreias de criadores nacionais. Paulo Mota apresenta o filme Um Jogo Bastante Perigoso, Joana de Verona e Eduardo Breda juntam-se na instalação/ performance Mappa Mundi, Tiago Correia e a sua companhia A Turma estreiam Estrada da Terra e o Hotel Europa chega com Perfect Match. Outra das estreias é amor.demónio, da dramaturga e encenadora Raquel S., em cena no Teatro Campo Alegre quinta e sexta-feira, ficando depois disponível para ver online no domingo (e nas 72 horas seguintes). Este espectáculo, interpretado e co-criado por Joana Mont’ Alverne, tem como ponto de partida as vidas de freiras reais e ficcionais, mas sem as reduzir a um olhar unívoco. O interesse por este tema, conta-nos Raquel S., foi despertado “há muitos anos”, era ela ainda “uma adolescente”.
“Encontrei nas estantes dos meus pais a edição da [editora] Futura das Novas Cartas Portuguesas [de Maria Isabel Barreno, Maria Velho da Costa e Maria Teresa Horta]. Levei anos a lê-las todas, mas tornou-se imediatamente um livro muito importante, ao qual voltei muitas vezes. Pela mesma altura li Do Amor e Outros Demónios [de Gabriel García Márquez], onde encontrei mais uma rapariga enfiada num convento, mais freiras”, recorda a criadora. Começou a fazer notas em cadernos em que cruzava os dois livros, quase como ensaiando um prólogo para um possível espectáculo. Pelo caminho, foi-se deparando com mais freiras, algumas delas escritoras, poetas, filósofas e dramaturgas, incluindo as portuguesas Mariana Alcoforado e Soror Maria do Céu. “Parece que foram desenvolvendo uma literatura paralela ao cânone marialva-patriarcal português”, considera Raquel.
Além disso, outro elemento que lhe interessou nesta pesquisa foi aquilo que o espaço do convento pôde representar para as mulheres e o seu “paradoxo” latente. “Por um lado, grande parte das freiras não queria ser freira. Eram enfiadas em conventos. Por outro, o convento é um espaço em que se livram de casar, da domesticidade, sendo também uma cela”, observa a dramaturga. Ou seja, algumas mulheres acabaram por encontrar nos conventos um espaço “de uma certa liberdade” e empoderamento, onde podiam fugir aos casamentos forçados e à violência machista, onde podiam levar avante os seus interesses pela escrita e pelos estudos, onde “exploravam completamente a sua fé”.
Apesar de muitas destas mulheres serem, de facto, domesticadas, submissas, prisioneiras – “a maioria, não dá para romantizar” –, o trabalho de Raquel S. mostra o outro lado daquelas que usaram “a cela para criar outras possibilidades”, criando uma narrativa alternativa às concepções dominantes sobre aquilo que uma freira pode ser, fazer e deixar como legado. “Se começarmos logo pelo amor da Mariana Alcoforado, podemos ver uma autodeterminação na escrita, uma exploração do sentimento pelo acto de escrever que foi muito explorado pelas Novas Cartas Portuguesas.”
Raquel S. dá ainda como referências a mexicana Soror Juana Inés de la Cruz, que escreveu La Respuesta, “onde defendeu o direito às letras das mulheres, usando citações da Bíblia”; a francesa Marguerite Porete, que “desenvolveu quase uma filosofia da consciência” e que foi queimada na fogueira por heresia; ou a portuguesa Soror Maria do Céu, que para Raquel era “a Maria Velho da Costa” do século XVIII. “Escreveu uma biografia da Elena da Cruz, que também me interessa muito pela radicalidade com que viveu a sua fé: ela dizia que queria ler as vidas todas dos santos para poder passar pelas suas mortificações e pelos seus sacrifícios. Isto é uma procura radical da profundidade da fé: ainda por cima através do corpo.”
Teatro Campo Alegre. Qui e Sex 19.30. 7€
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