[title]
No rádio pousado em cima do balcão ouve-se fado. A campainha toca de cada vez que alguém passa perto da entrada e, em simultâneo, vão-se ouvindo vários idiomas, misturados com a azáfama do exterior. Há quem entre cativado pela montra repleta de garrafas de vinho e conservas; e há quem já tenha a rotina de cá vir comprar há vários anos. “Tenho clientes que conhecem esta loja melhor do que eu”, conta Nuno Jesus, gerente d’ A Favorita do Bolhão, a mítica mercearia na Baixa portuense que abriu portas há 90 anos. É uma das lojas históricas que resiste e que mantém a sua identidade, sem esquecer a necessidade de se adaptar aos novos tempos e públicos.
Nuno faz-nos uma visita guiada. Quantos produtos estão neste espaço?, perguntamos. “Em referências distintas, diria duas mil. Em stock temos muito mais”, responde. Cada canto da loja é um mundo diferente. Em cima há prateleiras com vinho do Porto e vinhos de mesa; de um lado estão as conservas – de atum, bacalhau e sardinha –; em baixo encontram-se os biscoitos de marcas tão portuguesas como a Paupério ou a Valonguense; e, noutras gavetas e cestos, espreitam todo o tipo de bombons e rebuçados de múltiplos sabores. Ao fundo, ficam os frutos secos, as compotas, os chás e especiarias como louro, pimenta, canela, mostarda moída e piripíri. Nota também para as amêndoas da Páscoa, o azeite, os enchidos, o queijo e o bacalhau, um dos produtos bandeira desta loja, que nunca faltam por aqui.
É assim há 90 anos. A loja foi fundada em 1934 por Alexandre Santos, Manuel Lobato e José da Cunha Araújo e tornou-se uma referência nas mercearias finas da cidade do Porto. Em 1974/75, a instabilidade política e social e a idade avançada dos sócios levou à venda do espaço, adquirido, então, pelo actual proprietário. “O negócio é o mesmo. Claro que, com o passar dos tempos, vamo-nos adaptando à procura, mas a nível de estrutura está praticamente idêntica”, reforça Nuno, apontando para a maquinaria antiga que está em exposição na loja, como os moinhos de moer café e grão para fazer farinha.
A maior parte da facturação "depende do cliente nacional"
Nuno chegou à Favorita do Bolhão há seis anos. Já conhecia a loja e a imagem que tinha dela sempre fora a de um comércio mais tradicional. No entanto, aquilo que lhe chamou mais à atenção, garante, foi o atendimento personalizado e a relação próxima que é criada e mantida com os clientes, algo diferente daquilo que acontece nas grandes superfícies. “É o acolher bem as pessoas, o prazer de falar com elas, de perguntar como é que estão e como é que está a família. É uma relação muito próxima”, explica o actual gerente.
Este é um espaço que está na memória de muitos há vários anos. E são várias as vezes em que se encontram clientes antigos, que nunca deixaram de comprar n’A Favorita. “Tenho clientes que entram aqui e dizem: ‘Ouça, venho aqui há 40, 50 anos, a minha filha também passou a vir e o meu neto e o meu bisneto também já vêm’. Sinto-me muito pequeno à beira dessas pessoas. Algumas até ficam comovidas ao entrarem aqui, porque recordam os seus tempos de criança. Esta loja é dos clientes, não é do patrão, nem do gerente, nem dos funcionários”.
Noutros tempos, era possível comprar arroz e massa a granel nesta mercearia, mas o surgimento das grandes superfícies levou também à actualização da gama de produtos. “Fomo-nos especializando em produtos mais específicos, de uma qualidade acima da média. É isso que o nosso cliente procura”, acrescenta, sublinhando que grande parte dos produtos é de produção e origem nacional, com algumas excepções, como o bacalhau ou as sultanas, que vêm da Turquia.
Além dos clientes antigos, todos os dias entram clientes novos, de outros países, na Favorita do Bolhão, fruto do crescimento do turismo que a cidade do Porto tem vivenciado nos últimos anos. Este tipo de clientes leva sobretudo produtos típicos, como o vinho do Porto, as conservas e os enchidos. E, garante Nuno, não alteram a essência da mercearia. Até porque o principal cliente continua a ser o português.
“A maior parte da nossa facturação depende do cliente nacional. É importante haver um equilíbrio. Claro que beneficiamos com o turismo, mas é muito importante mantermos a nossa identidade e o nosso foco no cliente nacional. Os nossos preços não são inflacionados pelo turismo, o nosso preço é para o cliente nacional. Quem beneficia mais disso é o turista, que arranja aqui produtos a preços muito bons. Mas o nosso foco é o cliente nacional”, garante o gerente. “Isto é a nossa identidade, porque não são os turistas que vêm depois todos os dias cá”.
Uma sala para degustações e provas
A Favorita do Bolhão integra, desde 2017, o Porto de Tradição, um programa municipal criado para proteger as lojas históricas da cidade. O desaparecimento de várias casas históricas a que se tem vindo a assistir no Porto – como o caso da Casa Madureira ou a Mercearia do Bolhão – podem assustar ou deixar o resto do comércio tradicional de pé atrás. No entanto, garante Nuno, é importante estar atento ao mercado e saber adaptar o negócio, sem perder a essência. “É um desafio constante. Tentamos sempre, todos os anos, em todas as épocas, ir acrescentando produtos e testar se o cliente procura ou não procura aquilo”, reforça.
Um dos exemplos da adaptação aos novos tempos são as provas e degustações que costumam acontecer neste espaço com vários grupos, sobretudo grupos turísticos, para conhecer os produtos típicos. Para já, estas provas acontecem dentro do espaço principal da loja, mas, no futuro, será diferente. A pensar nestas actividades e na necessidade de manter a essência da loja, vai haver, em breve, uma sala dedicada exclusivamente a degustações de vinhos ou provas de outros produtos.
“Queremos criar um ambiente em que o cliente se sinta bem aqui dentro. A ideia é ser uma sala simples, rústica, para não haver uma mudança de identidade da loja. Há muitos clientes que vêm cá, que levam uma gama grande de produtos e até ficam aqui algum tempo. Acho que é interessante estar a fazer compras e, ao mesmo tempo, também poder estar aqui a fazer a degustação de produtos”, explica.
Outro dos possíveis projectos para o futuro é a compilação de toda a história desta mercearia. Um espaço que resiste ao passar do tempo e tem as portas abertas a todos. Sem esquecer os seus 90 anos de vida. “É assim desde 1934 e é assim que queremos manter”, garante Nuno.
Rua Fernandes Tomás, 783 (Porto). Seg-Sáb, 09.00-20.00.
+ Na rua Alexandre Braga, a “mais portuguesa do Porto”, nasceu um grupo para dar vida ao comércio
+ Vai um pezinho de dança? Chegou o Piquenique Dançante Sobre a Relva