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É sempre Natal na hora de abrir o forno neste armazém na Estrada de Manique. Não saem de lá pãezinhos quentes, mas antes peças de cerâmica únicas, meio toscas e claramente trabalhadas com o charme e poder das técnicas artesanais, que finalmente podem estar no armário de casa de qualquer comensal. A estrutura ampla tem o caos de um estaleiro mas a tranquilidade terapêutica da cerâmica, não é por acaso que alberga o já famoso ateliê Studioneves. “Ele é o Studio, eu sou o Neves”, brinca Gabi Neves, cara-metade de Alex Hell com quem encabeça a marca que mudou a cerâmica de autor no Brasil e a sua relação com a alta-cozinha.
Foi na estreita e limitada área de negócio que é a cerâmica de autor na restauração que o casal encontrou o sucesso, mais especificamente por culpa do chef-estrela brasileiro Alex Atala, que fez uma encomenda para um menu do seu restaurante em São Paulo, o D.O.M., com duas estrelas Michelin. O início foi difícil, mas assim que começaram a cair encomendas de outros restaurantes, a coisa deu-se. E deu-se bem por uns valentes anos, até virarem a página.
Chegaram a Portugal em 2018 com pouco mais que a certeza de que seria mais seguro ficarem por cá que no Brasil, de onde trouxeram oito anos de experiência em cerâmica de autor e vontade de conquistar o mercado europeu. Do outro lado do oceano venderam o ateliê que tinham, deixaram para trás uma casa, uma mão bem cheia de clientes e a sensação de insegurança e sobressalto constante de um casal com filhos que não sabe quem está ao virar da esquina.
Não tinham clientes em Portugal, trabalhavam durante a noite para acabar encomendas que tinham ficado pendentes no Brasil e foi “basicamente começar do zero”, lamenta Alex. Se a cerâmica de autor era um caminho de nicho? Sim, era. Se era possível continuar a fazê-lo por cá? Sim, também. Alex e Gabi contam agora com 35 restaurantes-clientes em Portugal, entre eles o Feitoria, Shiko, FOGO, Bairro Alto Hotel, Rossio Gastrobar, Eneko, Fortaleza do Guincho, Plano, Midori ou Prado.
Em Espanha abastecem o Can Bosch (Girona e Catalunha) ou o El Celler De Can Roca (Catalunha), em França o Oka (Paris) ou o Mirazur (Menton), no Japão o Den (Tóquio). Há muito boa gente pelo mundo a comer na loiça destes dois brasileiros e, a partir de agora, mais haverá, sem necessidade de ir a qualquer restaurante.
Dez anos a fazer cerâmica para restaurantes implicam uma década em paralelo a receber a mesma mensagem: “Fui jantar aqui e vi a sua loiça. Dá para ter uma das suas peças em minha casa? Como compro?”. Gabi e Alex não foram vencidos pelo cansaço dos pedidos, foi antes pelo tempo. Pelo tempo a mais.
Só quando o mundo parou, por culpa da pandemia, e que obrigou todos a parar com ele, é que Gabi e Alex se decidiram: era agora. Era agora que o tempo parecia mais longo e que os prazos para chefs não existiam – estava tudo alinhado para fazer a vontade a outro público exigente.
“Aproveitámos agora que o planeta pediu um tempo para construirmos uma linha de consumidor final. O critério foi simples: pegámos em peças que deram muito certo nos restaurantes nos últimos 10 anos, altamente empilháveis, versáteis e resistentes, e pensámos a linha dessa forma”, explica Alex. “A vantagem de não trabalhar para restaurante é que podemos explorar as cores, porque a atenção não tem de estar na comida do chef agora.”
Esta primeira coleccção foi criada com base num blend de massa único e feito no ateliê, à qual os ceramistas juntaram ferro para fazer nascer uma argila mais terrosa e com mais textura. Habituados a produzir também material que tem de sobreviver a uso intenso nos restaurantes – da acidez às facas ou máquinas de lavar – esta colecção doméstica não é excepção desse cuidado.
Nesta loja pop up criada no site do Studioneves existem nove modelos, todos disponíveis em branco, rosa e azul turquesa – cores que, atenção, são obtidas com óxidos e não com corantes. “As pessoas escolhem o que querem, onde querem comer e o que é mais ideal para os hábitos de cada um. São nove modelos, mas com três ou quatro já conseguem ter uma linha de casa”, diz Gabi.
Existe o big bowl (59€), o breakfast bowl (26€), o comfort plate (31€), o desert plate (22€), dinner plate (32€), a oval platter (59€), o coffee cup (13€), o tall cup (19,60€) e a mug (29,50€).
Os stocks são limitados e a produção estica até a conseguirem manter em paralelo com a dos restaurantes. “Vai ser até enquanto der. É tudo muito natural, o nosso foco continua nos restaurantes, por isso trabalhamos nestas colecções até ser possível”, refere o ceramista.
No estúdio sente-se calma, mas ainda que possa haver azáfama – têm capacidade para cerca de duas mil peças mensais –, a cerâmica e os processos manuais não se querem acelerados. Cada um na sua linha de montagem, Gabi e Alex dividem trabalho com mais alguns funcionários da marca – ela trata do desenho, do torno e da modelagem propriamente dita, ele fica-se pelos esmaltes e cozeduras.
Não importa a quantidade, porque assim que têm a primeira peça de cada modelo feita o processo é o mesmo, e o tempo que cada uma leva na modalagem, secagem e cozedura é igual, seja uma peça ou mil. “Cada peça que nos pedem é sempre uma aprendizagem nova, nunca é um processo de automação, porque temos de desenhar, calcular o encolhimento da argila, ver o comportamento do esmalte, é sempre uma novidade e não tem que ver com a sua experiência na cerâmica”, explica Gabi.
O Studioneves é (e quer continuar a ser) o oposto da produção massiva. Quer continuar a casar o detalhe da cerâmica artesanal com o que é mais próximo da natureza, porque “a perfeição não existe e nós não queremos chegar lá”, afirma Alex. “A nossa cerâmica não é levada como um hobbie, é uma produção profissional, mas isso não implica que deixe de ser artesanal”.
Nada sai deste armazém em Alcoitão, o centro nevrálgico da produção, sem que Alex ou Gabi ponham os olhos – e os dedos. Tudo tem o toque de midas da imperfeição até porque é por isso que são conhecidos: peças mais toscas, quase sem brilho e com formas deformadas, tudo o que as aproxime o mais possível da natureza.
“Cada peça tem personalidade, são como filhos para mim. A gente cuidou durante 30 dias ou mais aquela peça, claro que tem de ter a nossa marca”, refere Alex, explicando que o tempo investido nas peças é fundamental para completar o processo manual.
E quando optaram por Portugal, não fizeram por menos – o processo faz-se todo ele em português. “É importante dizer que tudo aqui é português, o único que não é português aqui sou eu”, brinca Alex, porque até Gabi tem raízes portuguesas. O forno é português, a prensa é portuguesa e as argilas são portuguesas, da zona de Vagos, onde a tradição cerâmica é forte.
Há sustentabilidade na cerâmica?
Desde que o casal se mudou para Portugal, outra questão foi atirada para cima da mesa: a sustentabilidade do sector. Várias visitas a fábricas de cerâmica portuguesas, para consulta de fornecedores de material, levaram Alex a ver além das fachadas, a ver os bastidores de grandes produções industriais e o desperdício gerado.
“O que se faz com ele? Nada, absolutamente nada. Não há reciclagem nas grandes fábricas, o desperdício é astronómico e esse é um dos grandes problemas do sector”, refere. “Não há forma de moer de novo quando a peça já tem vidrado e, por isso, lá fica amontoado o que tem racha, o que não presta, ninguém pensa nisso”.
O descarte no StudioNeves, conta-nos Alex, acaba por ser mínimo: primeiro porque não têm produção industrializada, e segundo porque cumprem os tempos da volta lenta do forno, abrindo só quando arrefece, ao contrário das grandes fábricas que o fazem quando as temperaturas estão altas, acabando por estragar muitas das peças.
Perante o cenário de outras indústrias por cá, Alex e Gabi decidiram implementar outra logística no ateliê que implicasse novos comportamentos e uma ideologia mais verde, “tal e qual como faríamos na nossa própria casa”, diz Alex. No ano passado decidiram recorrer a uma consultora de sustentabilidade que os ajudasse a delinear esse caminho, calculando a pegada ambiental para perceber o que podiam mudar.
“Nós queríamos um pacote de acções exequíveis, que pudéssemos implementar aqui mas que fossem replicáveis por outros ceramistas como nós, porque de facto o problema é generalizado”, explica. “Reduzir a temperatura da queima e gastar menos gás natural era um dos nossos objectivos. Conseguimos reduzir 30% e até tornar as peças mais resistentes. Queremos fazer, provar que estas medidas funcionam e levar isso a outros para trabalharmos juntos neste objectivo sustentável.”
Também as embalagens mudaram, consequência destes novos hábitos. São de papel, isentas de qualquer tipo plástico e com fita-cola de papel ecológico, o que as torna 100% recicláveis.
Estrada de Manique, 1610 - Armazém número 4 (Alcoitão). www.studioneves.com
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