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Dois mil e vinte e quatro é um ano de dupla celebração para os Blind Zero. Se há 30 anos davam os primeiros passos como banda, numa década em que "tudo era novo e tudo criava disrupção", três décadas depois estão também de olhos postos no futuro, com o lançamento do seu nono disco, Courage and Doom, esta sexta-feira, 31 de Maio. Um trabalho diferente dos outros, que reflecte a fase actual do grupo de Miguel Guedes, Nuxo Espinheira, Vasco Espinheira e Pedro Guedes: com mais maturidade e num "momento de enorme liberdade criativa", sem pressão.
Quem o diz é Miguel Guedes. Em entrevista à Time Out, o vocalista recorda os 30 anos dos Blind Zero, fala sobre as barreiras quebradas, as mudanças, o crescimento e o novo disco que é lançado sete anos depois de Often Trees (2017). As canções que o compõe nasceram dos momentos de privação e angústia vividos nos últimos anos, com a pandemia e guerras que vieram agitar o mundo e influenciar o próprio processo criativo do grupo. "Foi algo verdadeiramente único, que torna este disco uma peça muito individual no nosso percurso", explica. Além do rock, a electrónica está também presente neste novo trabalho, mas sem nunca "ser o coração das canções".
O novo álbum vai ser apresentado ao vivo esta quinta-feira, 30 de Maio, na Casa da Música. Um concerto que servirá também para comemorar os 30 anos de carreira da banda portuense.
Lançam esta sexta-feira um novo álbum, Courage and Doom, sete anos depois da edição do anterior, Often Trees. O que vos inspirou para este novo trabalho?
É um disco bastante diverso, não só pelo que tem dentro, mas também relativamente àquilo que fizemos antes. Talvez este seja o nosso disco mais atmosférico e mais abstracto em algumas paisagens. Há um certo sentido de decadência fílmica nas canções. Acho que quando as pessoas o ouvirem vão perceber que há uma diferença bastante grande em relação aos anteriores. Há um aprofundamento de ambientes que já foram explorados no Often Trees. Continua a ser um disco com elementos rock, mas a linguagem é um pouco mais atmosférica. O que nos levou a fazer este disco foi precisamente a sensação de querer fazer algo diverso. Nasceu numa altura em que ainda estávamos todos fechados em casa e começou a ser escrito aí. Atravessa também o início da guerra na Ucrânia e depois assiste ao reatar da vida tal como nós a encontrámos no passado, mas não exactamente igual. Acaba por ser uma síntese do nosso processo pessoal, enquanto músicos, a atravessar estes anos de tanta mudança, de tanta esperança e também de tanta falta de resolução.
É quase uma viagem por vários estados de espírito com tudo o que foi acontecendo?
Aconteceu muita coisa. O processo de escrita, desde logo, sendo individual, em casa e solitário, obrigou-nos a criar novas armadilhas para aquilo que eram os nossos processos internos de como fazer. De repente, demos por nós a ter que fazer diferente e isso foi bom, porque nos levou a procurar soluções novas. E a explorar instrumentos diferentes, com outro tipo de sonoridades que sempre ouvimos, mas que nunca trouxemos muito para os nossos discos. É mais planante e um pouco mais electrónico, sem nunca querermos que a electrónica abusasse de nós. Foi algo que deixámos muito claro: queríamos poder utilizar a electrónica para criar os ambientes que talvez outros instrumentos não o permitiam, mas nunca quisemos que ela fosse o coração das canções.
No fundo, servindo mais como paisagem das músicas.
Sim, há temas que se desenvolvem muito nessa temática meia sintetizada dos sons digitais, mas que depois se percebe que são ocupados pela voz e pela execução humana. Normalmente é esse o lado da electrónica de que gosto mais: quando ela se confronta com humanidade no próprio corpo. Há quem faça isso admiravelmente. Este disco passou por tantas diferenças, por tantas mudanças na sociedade, tantos lugares de solidão, de reencontro, de morte, de esperança... Há diversas tonalidades que reflectem todas as mudanças de estado de espírito e de percepção do mundo.
Disse que o processo deste disco foi mais solitário e individual devido a todas as circunstâncias de privação dos últimos anos. Foi um desafio depois conseguirem juntar todas as peças num álbum?
Sempre houve um processo de escrita individual, mas desta vez aconteceu numa solidão mais hardcore, digamos assim, porque não podíamos estar uns com os outros. Basicamente era tudo enviado e quando se envia há sempre um meio ferido de percepção. Envia-se sem explicação, sem estarmos olhos nos olhos e sem possibilidade de começar logo a trabalhar a partir dali. Havia quase um período de carência inevitável a seguir a qualquer ideia e isso também fazia as ideias repousar e convidava-nos sempre a encontrar formas diferentes de lidar com as nossas ideias. Elas próprias, por vezes, quase perdiam validade, porque demoravam muito tempo a serem executadas, passadas, trabalhadas por outras mãos e isso faz parte da dinâmica da banda. É um trabalho de muitas mãos que, de repente, ali não existia. Seja como for, indo nós repetir esse processo ou não, foi algo verdadeiramente único, que torna este disco também numa peça muito individual no nosso percurso.
Já lançaram um par de singles do Courage and Doom: “Running Back to You” e “I Only Miss You When I’m Breathing”. Porque escolheram estas duas músicas para anteciparem o novo trabalho?
Este disco tem oito canções e é muito difícil escolher, porque todas elas significam muito neste processo de escrita ao longo de tantos anos. O primeiro single é uma amostra dos ambientes mais planantes que passam no disco, uma canção mais funda, com uma densidade tranquila, mas sempre com um ruído interior muito forte. E que, de alguma forma, amadureceu connosco ao longo destes anos. Depois, a "Only Miss You When I'm Breathing" se calhar num campo com elementos mais rock, mas ainda assim com bastante electrónica presente, que percebemos que tinha características de ser uma belíssima segunda apresentação do disco, para também sairmos desses ambientes mais plácidos que se encontram em mais duas ou três canções e depois também de outros mais duros, que talvez guardamos para um período mais invernal.
É um disco mais maduro?
Vamos fazendo sempre coisas e canções que reflectem os nossos estados de espírito e podemos ser cada vez mais urgentes, ainda mais urgentes do que alguma vez fomos, e mais juvenis. A questão da maturidade tem mais a ver com o tempo de pensamento que este disco convocou. Tivemos muito tempo para o fazer. Avançámos, recuámos, vivemos as canções de forma muito diferente, tendo em conta os períodos que íamos passando e que foram muito dicotómicos ao longo destes anos. Por isso, quando os vamos gravar é um disco que tem essa maturidade. É como se as canções tivessem evoluído connosco, maturado connosco essas diferentes eras. Nós quase que vivemos eras diferentes nestes últimos anos e esse toque de abertura e de soltura e, por outro lado, muitas vezes de aprisionamento que sentimos nestes anos todos – de imensa liberdade ou de imensa consignação a um espaço – acabou por fazer as canções amadurecerem. E isso, indiscutivelmente, trouxe-lhes uma noção de espaço que elas não tinham no início.
“Os Blind Zero são um espaço de enorme liberdade criativa”
Comemoram também 30 anos de carreira. Como é que olha para a evolução da banda ao longo destes anos? Os Blind Zero de 1994 são muito diferentes dos Blind Zero de 2024?
São quase as mesmas pessoas a terem um enorme sentimento de proximidade e de felicidade por estarem a fazer coisas juntas, que se divertem de uma forma gigante quando estão na estrada e dão concertos, que pensam os seus discos talvez sem se levarem tão a sério como faziam no início, mas ainda com uma grande noção de que o que fica gravado fica para sempre. São, sobretudo, pessoas que entregam parte das suas vidas com este sentido de percurso. Demoramos tempo entre discos. Não temos a necessidade de fazer um disco por ano ou de dois em dois anos, nada disso. Fazemos mesmo quando queremos. Há uma espécie de felicidade, de um longo rio tranquilo, mas que por vezes fica cheio de corrente que nos faz perceber que estamos sempre a desaguar a um sítio que nos traz felicidade.
O público e o panorama musical mudou muito? Hoje há mais plataformas e um acesso à música que pode influenciar também a própria forma de trabalho dos músicos. Como é que se adaptam a estas mudanças?
Quando os Blind Zero começaram eram uma banda que se encaixava numa corrente, numa moda e também numa estética muito própria dos anos 90. À medida que o tempo vai passando e os discos se vão somando, também temos cada vez menos pertença a um catálogo e isso é muito bom porque é um momento de enorme liberdade. Sempre pudemos fazer o que queríamos, mas na altura a nossa visão era mais focada. Hoje, podemos explorar outras correntes estéticas, talvez com uma capacidade ou um conhecimento e uma maturidade que antes não tínhamos. Os Blind Zero são, nesta altura, um espaço de uma enorme liberdade criativa. Não temos que nos preocupar com nada a não ser em ter satisfação naquilo que fazemos e depois esperar que seja, eventualmente, ouvido. Não há nenhuma pressão. Os públicos, as plataformas mudaram, a forma como se ouve e se consome música mudou. Do ponto de vista simplificador e do mainstream, penso que a fruição da música empobreceu, tornou-se mais comercial, mas também continua a existir um público – até por isso, pela reacção a essa pequena fatalidade – cada vez mais fiel, cada vez mais informado e que procura cuidar dos seus artistas como cuida dos seus órgãos vitais.
Quando apareceram, nos anos 90, não havia tantas bandas portuguesas a cantar em inglês. Sente que agora o público já recebe com mais naturalidade músicas cantadas noutra língua?
Já se pensa cada vez menos nisso. Nos anos 90, a questão da língua ainda era ofensiva para algumas pessoas, havia uma espécie de clube dos que cantavam em português e dos que cantavam em inglês e acho que o tempo acabou por deixar claro que, como é evidente, tudo isso era uma patetice. O que as pessoas devem fazer é exprimirem-se na língua em que entendem, fazendo parte da cultura que fazem. Ninguém por cantar inglês deixa de fazer parte da cultura portuguesa, da mesma forma que assim será se alguém em Inglaterra resolver cantar num idioma diferente. Acho, sinceramente, que o que interessa são as canções e o que se diz e não o veículo e a língua que se utiliza para o dizer. Mas é evidente que na década de 90 tudo era novo, tudo criava disrupção. Sinto que nessa altura fizemos o nosso papel, como outros, a abrir portas para que também na questão da língua houvesse um espaço para liberdade.
Esta quinta-feira, 30 de Maio, actuam na Casa da Música, não só para apresentarem este novo disco, mas também para comemorarem os 30 anos da banda. O que vão levar para este concerto?
Será um concerto único e irrepetível, porque vamos celebrar os nossos 30 anos com um disco a sair no dia a seguir. Não há melhor forma de ter uma celebração quando se está a percorrer futuro no dia seguinte. Para nós era fundamental. Sempre que temos uma celebração a fazer, tentamos fazê-la de forma muito distinta, à procura de alguma coisa nova, que nos marca e que nos traga algo de novo. No concerto na Casa da Música vamos apresentar algumas das músicas que vão sair no novo disco, mas não vamos, de qualquer maneira, tocá-lo de fio a pavio, longe disso. Por ser um concerto de celebração vamos entregar às pessoas um pouco do que elas sempre nos pediram para tocarmos e nós nunca tocamos ou canções que já não tocamos há muito tempo e que achamos que devemos voltar de uma forma diferente e revista. No fundo, vamos satisfazer muitas pessoas que nos dizem que paramos de tocar esta ou aquela canção e que são canções que fazem parte da nossa história. Vai ser um concerto mais longo do que habitual, mas onde todos estão convidados para um momento de celebração e de procura de algo, de quem são estes novos Blind Zero.
Casa da Música. 30 Mai (Qui). 21.30. 18€
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