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Centenas de peças e muitos meses de trabalho. A tradição das cascatas de São João está viva e recomenda-se

Há quem faça as cascatas de São João ano após ano e há até uma competição para escolher as mais bonitas. Todos têm um objectivo: manter viva uma das maiores tradições desta época.

Ana Catarina Peixoto
Jornalista, Porto
Cascata de São João
DRCascata de São João da Academia Cultural e Artística de Aldoar
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A música “Chapéu de palha”, dos Bandalusa, vai ecoando pela sala da Academia Cultural e Artística de Aldoar (ACAA). Ao lado, o grupo de cavaquinhos acabou o ensaio e é hora de apreciar a cascata de São João que se encontra mesmo à entrada, construída e montada durante vários dias e com mais de 200 peças que representam a cidade, as pessoas e a grande festa em homenagem ao santo. Vítor e Maria José Arcos, ao leme desta associação criada em 2006, vão indicando onde está cada peça e boneco que não podem faltar nesta cascata — desde o  famoso "cagão" à imagem do São João e à água. "Perguntam sempre onde está este ou aquele boneco”, explica Maria José Arcos. 

Há oito anos que esta associação da zona ocidental do Porto começou a montar a sua cascata sanjoanina e a participar no concurso promovido pela autarquia. E já soma alguns pódios: foi a grande vencedora do ano passado e, este ano, conquistou o segundo lugar na competição. Mas, o mais importante, referem os responsáveis, é manter viva uma tradição única que vai enfrentando algumas dificuldades, sobretudo em alcançar mais participantes junto das associações. “Se deixarmos de fazer um ano, isto morre”, lamenta Vítor Arcos. Durante a infância, o casal também construía cascatas à porta de casa. Foi assim, aliás, que a tradição começou.

Cascata de São João
DRCascata de São João da Academia Cultural e Artística de Aldoar

Na cascata montada pela ACAA há de tudo um pouco, desde a figura de São João ao barco rabelo, passando por um comboio em movimento, pela Sé do Porto, pela Torre dos Clérigos, por um bailarico à volta do coreto, por pescadores e por chapéus de palha, que são o tema deste ano. “Nos anos 60/70 era normal, na classe média e baixa, irem para os arraiais com os chapéus de palha, uma vez que os outros chapéus já eram da classe média e alta", diz Vítor, acrescentando que também eram utilizados nas rusgas. "Além disso, tentamos sempre aproveitar tudo e ter aqui algum material reciclado, como as caixas de papelão das mercearias, que nos fazem o favor de oferecer para serem a base de tudo. Os candeeiros, por exemplo, são um pequeno copo de cartão coberto com um tecido feito em croché”, explica. 

A inspiração para os temas das cascatas vai surgindo ao longo do ano e é anotada num caderno de rascunhos que Vítor, hoje reformado mas que em tempos estudou Artes, faz questão de levar para todo o lado para desenhar o que lhe vier à cabeça. “Começo com estas brincadeiras, desenho em qualquer lado e começo a rascunhar. E daqui vai sair qualquer coisa”. Nem sempre sai à primeira, mas a imaginação e a criatividade estão sempre lá.

Vítor Arcos e Maria José Arcos, da Academia Cultural e Artística de Aldoar
DRVítor Arcos e Maria José Arcos, da Academia Cultural e Artística de Aldoar

O lado da curiosidade e da nostalgia

Fazer uma cascata é também partilhá-la com a comunidade. Para estes dois dirigentes associativos, o grande valor deste trabalho é poderem levar as cascatas a todos – dos mais novos aos mais velhos. É por isso que, todos os anos, recebem visitas de creches e de lares que chegam para verem propositadamente a cascata. “Levamos-lhes um bocadinho do São João”, diz Maria José. Apesar de ser um trabalho de “horas e horas, que cria algumas dores de costas”, a parte mais interessante é mesmo a de receber toda a gente, dizem.

“Gosto muito de os ver aqui. Os miúdos fazem muitas perguntas, querem saber o que são os bonecos, fazem um desenho daquilo que viram e fazem as coisas mais inimagináveis. Isso para mim é muito bom. E os idosos vêm matar saudades. Temos dois lados: o da curiosidade e o dos idosos que estão a recordar aquilo que também faziam, porque antigamente faziam [as cascatas] mesmo à porta de casa, com uns bonequinhos, a pedir para o Santo António e para o São João. Eles gostam de recordar os bonecos que tinham”, destaca Maria José.

Cascata de São João
DRCascata de São João da Academia Cultural e Artística de Aldoar

Uma cascata com 500 peças

Quem também mantém a tradição das cascatas sanjoaninas é David Silva, de Pedrouços, na Maia. Começou na infância a construir pequenas cascatas, mas foi há 20 anos que o verdadeiro desafio surgiu “com uma brincadeira” com a sobrinha no Senhor de Matosinhos. “Vi lá bonequinhos, comprei-lhe meia dúzia deles, comecei com um metro quadrado e hoje temos à volta de 500 bonecos. Muito disto é feito por mim à mão”, descreve. Assim começou uma paixão que ainda hoje cumpre religiosamente. 

David Silva constrói cascatas de São João há 20 anos
DRDavid Silva, de Pedrouços, constrói cascatas de São João há 20 anos

 

A cascata de David Silva está em exposição na Junta de Freguesia de Pedrouços e demorou mais de três semanas apenas para ser montada. Vê-se a Sé do Porto, “que levou sete meses a fazer e tem pormenores de madeira”; a capelinha do São João com água a cair e iluminada de azul; a ponte Luís I; a Serra do Pilar e também elementos da freguesia de Pedrouços, onde nasceu. “Só a montar a cascata demorou-me três semanas. Fiz tudo sozinho. Saio do trabalho e venho para aqui”, descreve à Time Out.

Os tempos livres são usados para se dedicar a esta arte. São vários dias e noites seguidos, com muita criatividade e concentração. Tudo porque quer manter a tradição e, ao mesmo tempo, gosta do desafio que as cascatas lhe trazem. “Dizem-me sempre: ‘Faz isto para o ano’ e eu começo a pensar e talvez faça. E ao ver aqui tanta gente cria-me sangue vivo e cada vez faço mais. Para o ano, de certeza, já vou ter mais coisas novas”, explica. 

Cascata de São João feita por David Silva
DRCascata de São João feita por David Silva

David sente também que pode ser o exemplo para ajudar a manter a tradição e, por isso, dá também bonecos aos vizinhos para que eles façam uma cascata – “quanto mais fizer, melhor”. “Ao fazer isto, sinto que estou a expandir e a dar ânimo às pessoas para fazerem as cascatas. Se não, a tradição acaba. Por mim não acabará, só se não puder mesmo. Cá estou eu para montar”, assegura. A cascata deste ano está pronta e disponível para ver até ao dia 7 de Julho, mas David já está a pensar na do próximo ano. “Estou a acabar uma e já estou com a cabeça no ano a seguir. Vou tendo sempre algumas ideias novas”. E assim vai mantendo viva e de boa saúde a tradição das cascatas sanjoaninas.

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