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A música “Chapéu de palha”, dos Bandalusa, vai ecoando pela sala da Academia Cultural e Artística de Aldoar (ACAA). Ao lado, o grupo de cavaquinhos acabou o ensaio e é hora de apreciar a cascata de São João que se encontra mesmo à entrada, construída e montada durante vários dias e com mais de 200 peças que representam a cidade, as pessoas e a grande festa em homenagem ao santo. Vítor e Maria José Arcos, ao leme desta associação criada em 2006, vão indicando onde está cada peça e boneco que não podem faltar nesta cascata — desde o famoso "cagão" à imagem do São João e à água. "Perguntam sempre onde está este ou aquele boneco”, explica Maria José Arcos.
Há oito anos que esta associação da zona ocidental do Porto começou a montar a sua cascata sanjoanina e a participar no concurso promovido pela autarquia. E já soma alguns pódios: foi a grande vencedora do ano passado e, este ano, conquistou o segundo lugar na competição. Mas, o mais importante, referem os responsáveis, é manter viva uma tradição única que vai enfrentando algumas dificuldades, sobretudo em alcançar mais participantes junto das associações. “Se deixarmos de fazer um ano, isto morre”, lamenta Vítor Arcos. Durante a infância, o casal também construía cascatas à porta de casa. Foi assim, aliás, que a tradição começou.
Na cascata montada pela ACAA há de tudo um pouco, desde a figura de São João ao barco rabelo, passando por um comboio em movimento, pela Sé do Porto, pela Torre dos Clérigos, por um bailarico à volta do coreto, por pescadores e por chapéus de palha, que são o tema deste ano. “Nos anos 60/70 era normal, na classe média e baixa, irem para os arraiais com os chapéus de palha, uma vez que os outros chapéus já eram da classe média e alta", diz Vítor, acrescentando que também eram utilizados nas rusgas. "Além disso, tentamos sempre aproveitar tudo e ter aqui algum material reciclado, como as caixas de papelão das mercearias, que nos fazem o favor de oferecer para serem a base de tudo. Os candeeiros, por exemplo, são um pequeno copo de cartão coberto com um tecido feito em croché”, explica.
A inspiração para os temas das cascatas vai surgindo ao longo do ano e é anotada num caderno de rascunhos que Vítor, hoje reformado mas que em tempos estudou Artes, faz questão de levar para todo o lado para desenhar o que lhe vier à cabeça. “Começo com estas brincadeiras, desenho em qualquer lado e começo a rascunhar. E daqui vai sair qualquer coisa”. Nem sempre sai à primeira, mas a imaginação e a criatividade estão sempre lá.
O lado da curiosidade e da nostalgia
Fazer uma cascata é também partilhá-la com a comunidade. Para estes dois dirigentes associativos, o grande valor deste trabalho é poderem levar as cascatas a todos – dos mais novos aos mais velhos. É por isso que, todos os anos, recebem visitas de creches e de lares que chegam para verem propositadamente a cascata. “Levamos-lhes um bocadinho do São João”, diz Maria José. Apesar de ser um trabalho de “horas e horas, que cria algumas dores de costas”, a parte mais interessante é mesmo a de receber toda a gente, dizem.
“Gosto muito de os ver aqui. Os miúdos fazem muitas perguntas, querem saber o que são os bonecos, fazem um desenho daquilo que viram e fazem as coisas mais inimagináveis. Isso para mim é muito bom. E os idosos vêm matar saudades. Temos dois lados: o da curiosidade e o dos idosos que estão a recordar aquilo que também faziam, porque antigamente faziam [as cascatas] mesmo à porta de casa, com uns bonequinhos, a pedir para o Santo António e para o São João. Eles gostam de recordar os bonecos que tinham”, destaca Maria José.
Uma cascata com 500 peças
Quem também mantém a tradição das cascatas sanjoaninas é David Silva, de Pedrouços, na Maia. Começou na infância a construir pequenas cascatas, mas foi há 20 anos que o verdadeiro desafio surgiu “com uma brincadeira” com a sobrinha no Senhor de Matosinhos. “Vi lá bonequinhos, comprei-lhe meia dúzia deles, comecei com um metro quadrado e hoje temos à volta de 500 bonecos. Muito disto é feito por mim à mão”, descreve. Assim começou uma paixão que ainda hoje cumpre religiosamente.
A cascata de David Silva está em exposição na Junta de Freguesia de Pedrouços e demorou mais de três semanas apenas para ser montada. Vê-se a Sé do Porto, “que levou sete meses a fazer e tem pormenores de madeira”; a capelinha do São João com água a cair e iluminada de azul; a ponte Luís I; a Serra do Pilar e também elementos da freguesia de Pedrouços, onde nasceu. “Só a montar a cascata demorou-me três semanas. Fiz tudo sozinho. Saio do trabalho e venho para aqui”, descreve à Time Out.
Os tempos livres são usados para se dedicar a esta arte. São vários dias e noites seguidos, com muita criatividade e concentração. Tudo porque quer manter a tradição e, ao mesmo tempo, gosta do desafio que as cascatas lhe trazem. “Dizem-me sempre: ‘Faz isto para o ano’ e eu começo a pensar e talvez faça. E ao ver aqui tanta gente cria-me sangue vivo e cada vez faço mais. Para o ano, de certeza, já vou ter mais coisas novas”, explica.
David sente também que pode ser o exemplo para ajudar a manter a tradição e, por isso, dá também bonecos aos vizinhos para que eles façam uma cascata – “quanto mais fizer, melhor”. “Ao fazer isto, sinto que estou a expandir e a dar ânimo às pessoas para fazerem as cascatas. Se não, a tradição acaba. Por mim não acabará, só se não puder mesmo. Cá estou eu para montar”, assegura. A cascata deste ano está pronta e disponível para ver até ao dia 7 de Julho, mas David já está a pensar na do próximo ano. “Estou a acabar uma e já estou com a cabeça no ano a seguir. Vou tendo sempre algumas ideias novas”. E assim vai mantendo viva e de boa saúde a tradição das cascatas sanjoaninas.
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