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Fred Gomes não sabe para onde foram todas as horas que lhe fugiram. Nas primeiras semanas de pandemia, fechou-se em casa, mas a criatividade ficou à porta. Só a apatia e a inércia lhe faziam companhia. “Para alguém que é freelancer, o pior que pode acontecer é perder o controlo”, confessa-nos por e-mail. O artista e co-fundador da agência criativa We Blog You, que, tal como os seus pares, viu muitos trabalhos serem cancelados, não conseguia fazer face à realidade e ainda se sentia culpado por não conseguir produzir.
“Depois percebi que, se não tenho direito a parar, respirar e processar quando está a acontecer uma pandemia, quando é que vou ter?”, questiona, e realça a importância de, mais do que nunca, “sermos mais preocupados, cuidadosos e carinhosos com os outros e connosco”. O amor-próprio, a ansiedade e a depressão são alguns temas que retrata nos seus trabalhos em design, ilustração ou tatuagem, e foi uma questão de tempo até voltar a fazê-los. “A inspiração tem de ser cultivada e parte do processo de cultivar algo é dar-lhe descanso”, reflecte.
Apesar de um presente de “instabilidade emocional e financeira” e de um futuro que se afigura difícil, Fred sente que é “um dos felizardos”. Trabalha em casa há dez anos, por isso, metade do seu dia é uma ilusão de normalidade. A outra metade é uma tentativa de contornar a necessidade de contacto exterior que, habitualmente, serve de combustível à criação. “Ir trabalhar para um café, visitar uma exposição ou abraçar e conversar com amigos são uma grande parte do processo.” Mudar de ambiente de trabalho é essencial para ter inspiração e, mesmo em isolamento, não abdica desse método. “Agora, mudo o computador da sala para o escritório ou rodo a secretária para que a vista do trabalho vá mudando.”
Também Marta Saraiva, que assina como annehail, dá de caras com a criatividade na rua, nos lugares que frequenta e nas pessoas com quem se cruza. Com base nisso, ilustra as suas experiências e emoções com humor e sarcasmo – o que não tem acontecido com regularidade ultimamente.
“A minha produtividade estagnou, porque para mim estar em casa é estar num espaço de lazer”, diz a artista. Anteriormente, articulava os momentos de criação com o trabalho como assistente num estúdio de tatuagens. “Essa rotina mantinha a minha vida em ordem”, admite Marta, que tem “uma relação muito próxima com a depressão e a ansiedade”. Através do seu trabalho, procura tratar os problemas de saúde mental com leveza e desmantelar os tabus que os habitam.
A repentina falta de estrutura levou a que demorasse a aceitar o “novo normal”. Na “fase de negação”, via filmes e jogava para se abstrair da realidade. Depois, “chegou o ponto em que até procrastinar era aborrecido”. Então, ganhou novo fôlego para produzir e, agora, está no plano intermédio: vai procurando informação e ideias novas, motivada pela “necessidade que as pessoas têm de escapar”, mas sem descurar o tempo de descanso.
Embora as redes sociais, em particular o Instagram, sejam essenciais para divulgar a sua arte, tem-se distanciado delas nas últimas semanas. Isto porque, afirma, estas tornaram-se num espaço monopolizado pelo novo coronavírus – realidade que também condiciona a sua expressão artística. “Como o foco é esse, temos de ilustrar o vírus, porque se tentamos fugir, o trabalho passa despercebido”, opina.
Além da produção artística monotemática, Marta refere que a quarentena trouxe “quase uma competição de produtividade” que pode ser tóxica. “Parece que toda a gente quer mostrar que está bem e que consegue fazer coisas”.
Cláudia R. Sampaio continua a fazer o que sempre fez. “Saio da cama, visto-me e enfrento o dia de trabalho como todos os outros”, relata a poeta e artista plástica, que normalmente anda entre a casa e o Manicómio, espaço de divulgação da arte de pessoas com doenças mentais. Apesar de, anteriormente, ter por hábito deslocar-se com frequência ao ateliê e galeria no Beato, em Lisboa, aponta que “o isolamento funciona muito melhor como fio condutor para a concentração”.
Estar sozinha é uma necessidade, já que é nessa quietude que aparece, muitas vezes, o poema ou a obra. Cláudia precisa de estar a sós com eles para, depois, poder conjurá-los no papel ou na tela. “A arte ajuda-me não a combater o vazio, mas a entendê-lo de modo a poder usá-lo na minha obra”, explica.
Apesar das frustrações inerentes à pandemia, defende que “a arte não se limita aos espaços”. Pelo contrário, “depende de nós e da nossa vontade”. Mesmo não deixando a pandemia ditar-lhe o ritmo de trabalho, nota que, inconscientemente, as suas obras recentes têm “cores mais alegres” e “imagens mais leves e bonitas”. A beleza, aliás, pode ser um ansiolítico eficaz nestes tempos insólitos. “Acredito que a arte é um dos melhores meios de comunicar sentimentos e de relembrar a beleza de tudo isto. E, quanto mais vezes nos lembrarmos da beleza, melhor”, conclui.
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