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Ao fim de 20 anos, a Palmilha Dentada conseguiu uma morada fixa, e sua, no Porto, a cidade que viu nascer e crescer uma das companhias de teatro independente mais resistentes do país. Numa localização improvável, mas especial – o número 125 da Travessa das Águas, uma pequena e semi-secreta artéria junto de Anselmo Braamcamp que mais parece uma vila no meio da cidade –, a Palmilha Dentada vai poder finalmente “ter o controlo” de um espaço de apresentação, organizar temporadas longas e gerir calendários de forma a poder levar a cabo aquilo por que sempre batalharam. Ou seja, “ter uma relação íntima, regular e continuada” com o seu público, depois de ter passado vários anos a saltar entre espaços como o Tertúlia Castelense, a Sala Estúdio Latino, o Helena Sá e Costa ou o Armazém 22. Ter este Lugar vai também permitir que mais pessoas possam conhecer a companhia, sem a pressa e a pressão tantas vezes impostas pelo circuito mais institucional.
“Principalmente agora, mais do que há 20 anos, ou tens um espaço ou estás nas mãos de programadores cujos objectivos políticos são diferentes das opções do criador”, diz Ricardo Alves, dramaturgo, encenador e director artístico da companhia. “Eu não estou preocupado em ter a sala cheia todos os dias. O programador está. Eu tenho necessidade de ter cadeiras vazias para que o público me venha ver e me descubra, e isso não é compatível com os objectivos dos programadores. Eles são pressionados, cada vez mais, para fazer permanentes festivais.” O facto de um espectáculo estar em cena apenas dois ou três dias é, para Ricardo Alves, contraproducente tanto para os artistas como para os espectadores. “O público precisa de tempo para decidir ir. Não pode ficar de fora se num dia tem um baptizado e no outro tem de ficar a tomar conta da mãe.”
“Eu, até enquanto espectador, acho saudável ter alguns lugares vazios durante uma sessão, porque de repente parece que só podes ir ao teatro se tiveres comprado bilhete previamente e isso faz perder esta coisa do ‘olha, estou aqui em frente a esta sala, deixa ir ver’”, observa Ivo Bastos, actor e braço direito de Ricardo Alves na direcção da companhia. Além de passar a ser a casa das produções da Palmilha, esta sala com uma plateia de 50 lugares vai também servir para dinamizar a programação dedicada à infância e às famílias, bem com acolher criadores e companhias independentes da cidade, numa tentativa de ajudar a estabelecer um outro circuito de apresentação e difusão. Durante quatro meses por ano, o espaço será partilhado com a associação Narrativa Provável, de Ana Carvalho.
“No Porto faltavam dez salas destas. Está aqui a primeira, alguém que faça as outras nove porque nós precisamos”, aponta Ricardo Alves, que acredita que se pode estar a assistir ao “começar de um novo ciclo”. Neste caso, o objectivo foi concretizado porque, pela primeira vez, a Palmilha foi contemplada com o apoio da DGArtes, ao qual se juntou a verba do programa Garantir Cultura. Este alinhamento inédito permitiu ter uma “folga financeira” para, finalmente, “dominar os meios de produção”. “Alguma vez havíamos de ser marxistas, já que passámos a vida toda a ser liberais multifuncionais”, graceja Ivo Bastos. “Já estávamos fartos de nos explorarmos a nós próprios”, atira Ricardo Alves.
Depois do fim-de-semana de inauguração, acompanhado por bifanas feitas gentilmente por uma vizinha, o Lugar começou a programação regular com o arranque do ciclo “Encontro do Conto”, uma iniciativa anual da companhia, e com o espectáculo Caixa de Nove Lados da companhia de teatro de marionetas Historioscopio. Até ao final do ano, o enfoque das actividades será o teatro para infância e famílias, mas haverá espaço para um debate, a 29 deste mês, sobre a cada vez mais difícil passagem da academia para o mundo profissional do teatro. Em Janeiro de 2022, a Palmilha Dentada estreia na sua nova casa o espectáculo Vicenzo e, em Fevereiro, recebem a Musgo, outra companhia independente da cidade. De resto, propostas são bem-vindas. “Estamos abertos à loucura.”
Travessa das Águas, 125 (Bonfim, Porto)