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Estão muitas vezes escondidos, em ruas afastadas da azáfama do centro da cidade. Não são monumentos, mas estão cheios de histórias, talento e têm a árdua tarefa de conjugar técnicas antigas e manuais com aquilo que a modernidade por vezes exige. São artesãos, as mãos do Porto que tecem, moldam, pintam, desenham, reparam, cosem e mostram um outro lado da cidade. E são eles quem o projecto Curated Porto quer dar a conhecer, com um novo roteiro turístico dedicado aos ateliers e oficinas da cidade.
Da cerâmica à ilustração, passando pela joalharia, o têxtil e o trabalho com madeira, o programa lançado em Abril pela Câmara Municipal do Porto propõe, além da divulgação, a visita gratuita a 13 espaços, com marcação prévia, para conhecer os rostos e histórias dos artesãos no Porto e o trabalho que é feito e vendido em cada atelier e oficina incluída neste roteiro.
É, nas palavras de Catarina Santos Cunha, vereadora do Turismo e da Internacionalização, uma forma de ir ao encontro de um turismo com propósito. “Há pessoas que vêm à procura de se envolver, de conhecer a cultura das cidades, de passar mais tempo, de se imiscuir um pouco com os residentes e não naquela óptica de visita pura e dura, de tirar a fotografia e ir embora”, explica à Time Out, acrescentando que os objectivos passam por "estimular a economia local, a fixação das indústrias culturais e o intercâmbio internacional".
A autarquia está a trabalhar na segunda fase do programa, estando prevista até ao final do ano a inclusão de mais artesãos no itinerário e também a aposta em programas de acção e formação para os participantes, sempre de adesão voluntária.
E desengane-se quem pensa que este roteiro percorre apenas o centro histórico do Porto. As zonas da Boavista, Campanhã e Bonfim também estão incluídas e mostram o tanto que existe de artesanato espalhado pela cidade. Decidimos, também nós, partir à descoberta: percorremos parte deste roteiro, visitámos um atelier/oficina de cada área e fomos conhecer algumas das mãos que fazem o Porto.
A cerâmica de Mónica Santos
Na zona do Bonfim, Mónica Santos mete as mãos na massa para fazer peças de louça de mesa e outros objectos de decoração – desde pratos a tigelas, canecas e até repousos de sabonetes. A história de Mónica nem sempre passou por este atelier: formada em design de produto, chegou a estar durante vários anos na confecção de objectos de decoração em multinacionais e grandes marcas, dominadas pela dimensão industrial da sua produção, e passou por várias áreas, desde o vidro ao mobiliário. Há 15 anos, a artista decidiu que queria desenvolver um projecto próprio, de menor escala, que permitisse criar e produzir à mão várias peças de cerâmica – e não apenas ver os outros a fazê-lo.
Mónica dá ainda alguns workshops em colaboração com várias instituições. O seu trabalho inspira-se "na estética e funcionalidade asiática" e, por isso, gosta de criar peças com uma paleta de cores neutra, minimalistas, com utilidade e pormenores de texturas, e, acima de tudo, faz questão de não desperdiçar nada.
“Como trabalho com muitas matérias, vão ficando vários restos que depois utilizo para fazer experiências e outras peças”, explica, enquanto mostra os vários objectos expostos na montra. Na parte de trás da loja, há estantes com caixas, tintas e outros materiais, um forno preparado para secar as peças, num processo de trabalho que é minucioso e que exige tempo para que todas as fases fiquem completas.
O roteiro em que passou a estar inserida, considera Mónica Santos, é uma forma importante de promover os artesãos da cidade e dar-lhes alguma visibilidade. Apesar de tudo, "os turistas e muitas pessoas já vão tendo contacto, interesse e motivação por estas áreas, mas ainda não andam nestas ruas". "Muitos estão escondidos ou distantes do acesso do grande público. Neste momento somos 13 projectos, mas ainda há muitos mais, tantos que há por aí”, acrescenta.
Célia Esteves e a arte de transformar desenhos em tapetes
Também no Bonfim vive a GUR, de Célia Esteves, que transforma vários desenhos elaborados por designers, artistas e ilustradores em tapetes únicos feitos em tear e com tecido 100% algodão. “Quero manter as técnicas tradicionais de tecelagem associadas à contemporaneidade estética do objecto”, explica a artista.
No seu atelier há tapetes de vários tamanhos afixados nas paredes, pousados em cima de uma mesa e expostos na montra. Uns com frases, outros com formas e desenhos, todos feitos à mão e sempre diferentes. Lá dentro, e por detrás de uma pequena porta, vive um tear que é usado para fazer algumas peças, também produzidas por outras tecedeiras com quem a artista trabalha. Os tapetes GUR, diz, estão “espalhados por todo o lado”, desde hotéis a clientes individuais que decidem comprar um tapete único para terem em casa.
Célia nasceu em Viana do Castelo, é licenciada em design de comunicação, chegou a trabalhar nas oficinas técnicas da Universidade de Belas Artes do Porto, mas sempre teve a tendência “para gostar mais de trabalhar com as mãos do que propriamente sentada numa mesa no computador”. A ligação ao artesanato, aliás, sempre foi muito próxima: em criança, Célia era já apaixonada por bordados, texturas e pela tecelagem das saias, dos aventais e dos trajes tradicionais. E foi também por esse gosto que aprendeu a bordar sozinha.
A GUR nasceu há dez anos, depois da artista ter conhecido a tecedeira Cláudia Vilas Boas numa exposição que fez em Viana do Castelo. O conceito do projecto passa muito por um trabalho de colaboração com os designers e ilustradores. "Vamos desenvolvendo ideias, vamos trocando desenhos até que chegamos a uma versão final que dá para passar para o tapete, porque a técnica, apesar de tudo, é limitada. Mas isso também obriga-nos a ser mais criativos e a procurar novas soluções. Às vezes o resultado final acaba por ser uma surpresa que agrada tanto a mim como ao artista", refere.
Dalila Gomes, a "arquitecta das jóias"
Passamos do Bonfim para a zona da Boavista e Campo Alegre, onde Dalila Gomes pensa, desenha e cria, manualmente, vários tipos de jóias em ouro e prata. A joalheira está mais tempo dedicada à confecção das peças e, por isso, atende os clientes apenas por marcação. "Muitas vezes estamos escondidos porque nos dedicamos muito à nossa arte na oficina e acabamos por não dar muito a cara à cidade. Penso que começa a haver um turismo cultural já mais interessado naquilo que é exclusivo, que é distinto da cidade e o que a cidade pode oferecer e que os artistas da cidade podem mostrar”, explica.
Dalila diz ser a “arquitecta das jóias”. Licenciada em arquitectura, chegou a trabalhar com Álvaro Siza Vieira e a fazer vários projectos para o exterior. Ainda hoje, diz, aplica muito do que aprendeu nessa altura. Mas as jóias – que em pequena já fazia para "clientes imaginários" – falaram mais alto e a artesã decidiu seguir outro rumo. Foi amor à primeira vista logo na primeira aula do curso de joalharia: “Era só para aprender a serrar metal e a fazer linhas e eu vim de lá tão feliz, parece que aquilo estava no meu ADN”.
Com a formação concluída, a joalheira começou por montar um atelier em sua casa. Fazia jóias para família, amigos, amigos de amigos, até que decidiu dar um passo em frente e, em 2017, abriu um espaço próprio. Na parte de trás da sua loja, há máquinas e ferramentas de todo o tipo -- desde laminadores a martelos de serralheiro, alicates de diferentes tamanhos, polidoras e adrastas mecânicas. E tudo está meticulosamente organizado, num perfeccionismo que sempre fez parte de Dalila, adepta das linhas geométricas, do minimalismo, de jóias leves, confortáveis e personalizadas. “Tal como o arquitecto faz o projecto de uma casa, eu faço o projecto das jóias”.
O que a joalheira gosta mais em todo este processo, acrescenta, é o facto de fazer jóias com simbolismo, personalizadas e que ficam para toda a vida, num trabalho sempre muito interactivo com cada cliente. “A jóia quase que é desenhada e construída por mim e pelo cliente, em conjunto”, explica.
A ilustração de Teresa Rego
Na Baixa do Porto também se respira arte. Da ilustração, Teresa Rego mostra o seu atelier, showroom e oficina, na Rua de Oliveira Monteiro. Começámos pela zona da loja, onde estão várias obras expostas para venda e onde se notam desde logo as várias texturas, padrões e cores vivas das ilustrações desta artista. As "várias possibilidades que o mundo da ilustração oferece" são um dos aspectos que mais lhe chamam à atenção nesta arte.
Ao descer umas pequenas escadas, entramos no coração deste espaço: o atelier. É aqui que fervilham as ideias e nascem várias ilustrações, colagens e serigrafias, num estilo próprio, mas difícil de descrever. “Nunca penso que vou fazer uma ilustração com determinado estilo. Não. O estilo é Teresa Rego. Penso que as pessoas quando vêm ter comigo já estão um pouco à espera daquilo que podem encontrar e qual vai ser o resultado da ilustração. Tem sempre que haver um equilíbrio entre cores. As cores estão lá por um motivo”, explica.
O percurso de Teresa também começou numa área diferente. Formou-se em arquitectura, mas já nessa altura “ia fazendo alguns trabalhos de ilustração e colaborações”. Por isso, quis aprender mais sobre esta arte e foi estudar ilustração para o Reino Unido. Voltou para o Porto em 2019 e no mesmo ano chegou ao seu atelier, onde desenvolve as suas próprias colecções e colaborações com várias marcas nacionais e internacionais.
“Existe imensa gente que quer saber de artistas e do eles fazem, porque às vezes acabamos sempre por ir aos mesmos sítios e não sabemos de outras opções que existem. Às vezes as coisas estão perto de nós e mesmo assim não nos apercebemos, por isso acho que este roteiro é extremamente necessário”, refere a ilustradora, deixando ainda algumas sugestões para o futuro, desde um mapa físico presente em vários pontos de turismo a iniciativas como uma open house de alguns dias em que todos os ateliers possam abrir as portas para receber visitas.
A Oficina dos Violinos de Miguel e Filipa Mateus
Quem também recebe várias visitas desde 2013 é Miguel e Filipa Mateus, da Oficina dos Violinos. Na loja e atelier deste casal, a música clássica ecoa com a mesma suavidade com que todos os instrumentos estão expostos. Há instrumentos com centenas de anos (o mais antigo é de 1786), que passaram de geração em geração e violinos feitos à mão na oficina – e únicos no mundo por usarem vinho do Porto no verniz.
Na parte de trás da loja, separada por um vidro que permite aos visitantes olharem para o seu interior, restauram-se e reparam-se instrumentos que muitas vezes têm um valor sentimental imensurável para quem os confia a estes artesãos. Miguel ainda trabalha "à moda antiga" e acredita que o segredo passa pela confiança e relação de proximidade com todos os que ali entram. "Gosto de apertar a mão às pessoas que nos visitam, de conversar, de me sentar com elas e não apenas aquele trato mais comercial, do quer comprar isto e vai e leva. É por aí que fazemos a diferença. Também abrimos o atelier para que se consiga perceber o que se passa lá dentro. Não há segredos. O segredo é o trabalho”, aponta Miguel, um dos poucos luthiers ainda em actividade no Porto.
Enquanto Miguel olha pelos violinos, Filipa é mais ligada aos arcos. São gostos e histórias diferentes que se encontraram. Miguel sempre foi apaixonado por violinos, aprendeu a tocar na igreja que frequentava quando era mais novo e tinha aulas às escondidas. Um dia, o violino que tinha necessitava de reparação, mas não havia ninguém que fizesse esse trabalho. Foi aprendendo sozinho com a ajuda de alguns luthiers com quem comunicava por fax. E, com muito trabalho e dedicação, nasceu um novo luthier.
Já Filipa é formada em física aplicada e apaixonou-se pelos arcos numa visita a vários luthiers em Cremona, Itália, durante a sua lua-de-mel. “Nem sabia se podia pegar ou não naqueles arcos, mas achei aquilo tão bonito que nesse dia olhei para um dos arcos, peguei nele e pensei: ‘Isto é uma obra de arte. Um dia, vou querer fazer um destes’. Voltamos para o Porto com essa ideia na cabeça e criamos a Oficina dos Violinos”, conta. Entretanto, Filipa foi para a Suíça aprender mais sobre este instrumento e hoje é uma das poucas mulheres em Portugal que trabalha com arcos.
O trabalho de restaurar um instrumento é minucioso, feito ponto por ponto e, em muitos casos, pode demorar vários meses. “É por isso que um luthier tem o nome de paciência”, atira Miguel. Além da venda e reparação de instrumentos, a Oficina dos Violinos tem também um serviço de aluguer de violinos para dar mais oportunidades de acesso à música. E por falar em oportunidades, também Miguel e Filipa consideram essencial mostrar que o Porto tem muito mais do que os locais tipicamente turísticos: “É mostrar que não há só a Livraria Lello nem o Majestic. Vejam lá, aqui no Porto também se fazem violinos, porcelanas ou jóias”.
Os 13 artesãos que integram o Curated Porto:
- Ana Seixas (ilustração e cerâmica) - Rua de Oliveira Monteiro, 483
- Célia Esteves (têxtil) - Rugby Gur, Rua Joaquin António Aguiar, 65
- Clara Rêgo (cerâmica) - Rua do Zambeze, 184
- Dalila Gomes (joalharia) - Rua da Boavista, 334
- Daniela Lino (têxtil)- Rua Justino Teixeira, 601
- Elisa Vale (artesanato, têxtil) - Rua das Doze Casas, 192
- Isabel Quaresma (têxtil) - Travessa de Santo Isidro, 112
- Joana Nogueira (cerâmica) - Avenida da França, 832, c/v E
- Miguel e Filipa Mateus (artesanato, madeiras, instrumentos de corda) - Oficina dos Violinos, R. da Torrinha, 228, Loja F
- Mónica Santos (cerâmicas, madeira) - Rua do Bonfim, 302
- Patrícia Sousa (têxtil) - Earlymade, Rua do Rosário, 235
- Teresa Branco (cerâmica) - Brâmica, Rua de Santo Isidro, 181
- Teresa Rego (ilustração) - Rua de Oliveira Monteiro, 475
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