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Por estes dias, entrar na galeria da Lehmann + Silva é abandonar, temporariamente, a cidade para rumar ao deserto do Arizona em 2220. É no futuro que encontramos Oona, uma mulher que cria um santuário animal para pangolins, os mamíferos mais caçados do planeta que, nesta realidade alternativa (mas não tão distante do presente), estão praticamente extintos.
Os poucos que restam são criados para tráfico, já que as suas escamas são a moeda corrente da economia mundial, além de altamente cobiçadas pela medicina tradicional chinesa há pelo menos dois séculos. Para saturar o mercado e salvar os animais, Oona fabrica escamas falsas que funcionem como moeda e remédio. Tudo isto no laboratório improvisado na sua propriedade alimentada por energia solar.
A personagem principal de The Living Currency — conto de ficção científica escrito em colaboração com Lorena Muñoz-Alonso e que serve de alicerce aos restantes elementos de Overlay, exposição que está na galeria até 29 de Agosto — foi inspirada em Thomas Ashcraft, astrónomo de rádio amador norte-americano que vive no deserto e faz moedas. “O deserto [apresenta-se] como espaço que tem absorção constante de energia solar”, introduz Diana Policarpo.
A artista visual e compositora, que arrecadou o Prémio Novos Artistas Fundação EDP 2019, cruzou várias referências literárias para problematizar o sol como derradeiro capital. Foi o escritor Georges Bataille que introduziu a ideia em The Accursed Share, Vol. I, ensaio que “faz um levantamento histórico e antropológico de sociedades primitivas cuja economia andava em função do próprio sol”, explica.
Não admira que o espaço esteja pensado para evocar a estrela central do Sistema Solar, da película amarela que envolve a montra e “transforma a luz e a temperatura”, ao som proveniente da cave da galeria, onde está The Ultimate Capital is the Sun, peça criada com ficheiros de áudio de matéria solar, recolhidos pela NASA e por Thomas Ashcraft. “Esta informação é mais fiel de ser ouvida pela impossibilidade de olhar o sol.”
Mas esta é apenas uma das várias camadas que compõem a exposição. O natural contrasta com o construído, nomeadamente o sistema de troca, oferta e poder estabelecido pelo ser humano desde a pré-história. “Há esta questão das gift economies [economias da oferta, baseada na troca de bens e objectos, aplicadas em sociedades primitivas], que tratam os próprios seres vivos como um presente”.
A partir de “objectos que funcionaram como moeda corrente em períodos específicos”, anteriores ao metal e papel do dinheiro que conhecemos hoje, Diana Policarpo idealizou o conjunto de esculturas em ferro que forra a parede da L+S. As peças são formas simplificadas de artefactos que “circularam globalmente entre Ásia, África e América do Norte”, como búzios, enxadas, facas ou espadas. “Baseei-me em objectos que vi na sala Money [dedicada à história do dinheiro] do British Museum”, revela a artista sobre a exposição, também disponível online.
A “constelação de assuntos” presente em Overlay, como “a distância ou o desconhecimento provocados pela acumulação de capital” e a “crise de escassez de recursos [naturais] que afecta todos” remete para a necessidade de repensar “o valor do corpo e o seu significado perante outras espécies”, sublinha Diana Policarpo. “Há uma alquimia que apela a qualquer outra coisa que não o hiper-materialismo e consumismo que vivemos”.
Estas e outras questões atravessam o corpo de trabalho da artista, que regressa ao Porto em Dezembro com Nets of Hyphae. A exposição programada para a Galeria Municipal do Porto dá seguimento à investigação sobre “a relação de precariedade entre fungos e trabalhadores”, e alavanca-se num fungo da família do Cordyceps, que protagonizou a obra vencedora do Prémio EDP. O organismo, que cresce essencialmente em trigo, centeio ou aveia, causou a contaminação de várias pessoas em epidemias e pandemias ao longo dos séculos. “Não deixamos de passar o mesmo tipo de ciclos”, remata.
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