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Menos de um ano depois de ter conquistado o MasterChef Portugal, Rui Lemos não resistiu ao convite para abrir um restaurante em Paredes de Coura, mesmo que isso não fizesse parte dos seus planos – pelo menos para já, ou pelo menos para ali. O desafio partiu de Paulo Pinto e Susana Vassalo, o casal que há uns anos decidiu fazer vida na vila minhota e que ousou pensar fora da caixa quando soube da abertura do concurso público para a concessão do espaço onde hoje fica o Taboão, em plena Praia Fluvial do Taboão. Paredes de Coura tem vários atrativos – e o Vodafone Paredes de Coura será certamente um deles –, mas restaurantes que se tornem num destino por si não estava a acontecer. Até agora. “No Alto Minho, há muito a cultura de as pessoas rumarem a Ponte de Lima para comer, ou a Monção, ou Melgaço. Nós gostávamos que isso acontecesse aqui com o nosso restaurante, que as pessoas também viessem dos outros sítios para aqui.”
Até ver, em apenas um mês, o desejo de Paulo tem sido concretizado. Se tivesse que contabilizar, garante que 70% dos clientes que aqui tem chegado vem de vários pontos do país, e apenas 30% é da terra. Muito se deve, está claro, à visibilidade que Rui Lemos ganhou no último ano. No programa da RTP, MasterChef, não houve um episódio onde o artista, aparente aprendiz de cozinha, não tivesse conquistado rasgados elogios dos chefs Noélia Jerónimo, Miguel Rocha Vieira e Diogo Rocha – e no final, levou o título para casa. Natural de Guimarães, mostrou ter técnica e conhecer bem o receituário tradicional, sem ter medo de a cada prato acrescentar o seu cunho, quase sempre influenciado pela gastronomia japonesa. E é isso mesmo que está a fazer no restaurante que agora chefia, onde nem os gabados purés foram deixados de fora da carta.
“Via-me a dar este passo mais tarde, tinha o objectivo de abrir um espaço em três/cinco anos. Foi mais rápido”, diz, descontraído, depois de mais um serviço. “Eu sempre vivi um bocado assim. Programo poucas coisas e depois deixo o resto do espaço para aquilo que vai aparecendo… Apareceu isto e apaixonei-me logo”, revela.
A história deste restaurante, na verdade, não começa com Rui, mas com Paulo e Susana – ele realizador e ela arquitecta (responsável pelo projecto de renovação do espaço). “Isto talvez tenha começado pelo cinema”, conta Paulo, que fez carreira no cinema, maioritariamente como realizador. “Houve um filme que me marcou muito pela ideia de trabalhar numa loja de discos que foi o Alta Fidelidade. Há muitos anos, o meu sonho era ter uma loja de discos, ser uma espécie de Jack Black e recusar músicas horríveis às pessoas”, brinca. “Depois a ideia evoluiu para um bar japonês, onde se ouvisse música em vinil e tudo culmina aqui em Paredes de Coura num espaço que acaba também por ter um pouco desse conceito”, continua o responsável, que se mudou com Susana para o coração do Alto Minho em 2018. “Vivemos oito anos em Barcelona e quando a Susana descobriu que estava grávida, decidimos ter um filho aqui, que é a terra dela. Quando chegámos a Paredes de Coura, começámos a trabalhar cada um na sua área, sempre saindo daqui porque não tínhamos raízes de trabalho nenhumas.” Mas só até algumas das sementes darem frutos em terras courenses e novas raízes ganharem força.
“Começámos mais activamente a trabalhar em Paredes de Coura e depois descobrimos, no ano passado, que o Taboão tinha concurso público e, de repente, surgiu a ideia de concorrer”, contextualiza Paulo. “Depois de entrar no concurso público, a Susana diz-me: ‘Olha, sabes que estão a fazer um espetáculo do 25 de Abril em Paredes de Coura e que quem está a encenar esse espetáculo é o músico que ganhou o MasterChef. Eu pensei: isto é espetacular, ter a ideia do conceito da música para o restaurante e o chef ser músico… Juntaram-se aqui uma série de pormenores fantásticos”, resume. “O Rui veio ver o sítio e gostou muito. Percebemos que era uma cozinha muito interessante também em termos de área. O sítio é maravilhoso, tem uma vista incrível. De repente, paisagem, música… tudo começou a vir ao de cima.”
De loja de discos a listening bar e a restaurante de autor no cenário onde acontece um dos maiores festivais de música do país foi um passo. O plano nunca foi que a música se revelasse intrusiva ou que virasse adereço decorativo folclórico, mas que fizesse parte da história. Tal como na cozinha a intenção nunca foi fazer mais um restaurante de comida tradicional. Se na sala, a música se revela nos detalhes – ora num candeeiro que aproveita pratos de bateria, ora num canto especial onde o gira-discos está à disposição dos clientes, que podem escolher a banda sonora a partir dos vinis disponíveis –, na cozinha é também assim que se nota a tradição.
Trabalhar a paisagem
“A mim interessa muito a palavra ‘paisagem’. Gosto de trabalhar a partir do território. Isso dá-me muita pica”, diz Rui Lemos, afirmando-se um “minhoto de gema”. “No Minho é onde mais me sinto em casa. Amo o Minho profundamente e a paisagem é uma coisa que me está muito próxima e que quero trabalhar”, justifica. “O borrego, a vaca, o cabrito, tudo o que usamos é daqui, do pasto. E interessa-me misturar com técnicas também mais ancestrais de outros países.” Tal como se havia apresentado no MasterChef.
As entradas, por exemplo, estão divididas entre “no bolo” ou “no prato”, sendo as primeiras inspiradas no bolo de tacho, típico de Paredes de Coura. “Nós temos quase igual no Baixo Minho, só que não se faz no tacho, faz-se no forno de lenha”, explica o chef, que aqui serve esse mesmo bolo com truta fumada (10€), torrado de javali (6€), punheta de bacalhau (7€) ou shitake e queijo curado (6€). Já no prato, destacam-se uns espargos com azeite e gorgonzola (8€) e uma salada paisagem (6€), lá está.
Nos principais, nas carnes tanto há um naco minhoto com batatas e legumes em sake (17€), como um afogado de borrego bordaleiro com puré de batata (17€), enquanto nos peixes é difícil fugir ao bacalhau à casa (23€), servido com o puré de aipo que despertou curiosidade no programa de televisão, e aos filetes de polvo com arroz caldoso (20€). Há mais para provar, como o naco de raiz de aipo (17€), numa carta ainda a dar os seus primeiros passos.
Nas sobremesas, onde Rui conta com a ajuda de outro concorrente do MasterChef – Domingos Silva –, entre o pudim abade de Priscos (6,5€), a pavlova de frutos vermelhos (5,50€) e a mousse de lima (5€), distingue-se o tiramisù de biscoitos de milho (6€), típicos da terra, e que Rui não conhecia antes desta aventura. “Eu quero cada vez mais conhecer, mas também não me interessa ter tudo de uma vez e focar só nisso”, defende.
“Eu quero caminhar para uma coisa mais autoral dentro deste universo. Acho que é um caminho que tem que ser feito e que pode demorar o seu tempo. As coisas vão-se descobrindo”, acredita Rui que ao almoço, apenas de quarta a sexta-feira, disponibiliza ainda um menu executivo (15€ com sopa, prato, bebida e café), que lhe permite dar largas à criatividade, chegar a mais pessoas e, quem sabe, testar pratos que podem vir a entrar na carta. “Por exemplo, hoje tivemos um prato do sul de Espanha, Andaluzia, inspirado numa salada com laranja e bacalhau, que para aqui é uma coisa meio marada, mas que saiu para caraças”, ri-se o chef. Também já serviu arroz de pato, salada de massa e truta fumada, estufado de ervilhas e ovo numa lista que ainda tem muito para dar. “É curioso, quando sei o menu executivo [vejo como] é tão descolado do nosso menu. É muito interessante e é sempre espetacular sabermos o menu”, interfere Paulo. “O Rui é um criativo. De repente, não é aquilo que lês num menu executivo em todo o lado”, acrescenta, destacando o feedback positivo que recebe diariamente dos clientes.
“Há algumas coisas em que eu estou a jogar mais pelo seguro. Por exemplo, no cabrito de domingo [35€/duas pessoas e apenas por encomenda] eu não toquei ainda, mas ele é servido com uma salada de laranja, também da Andaluzia, que eu gosto muito da gastronomia andaluz. Mas acho que de um modo geral, o menu é todo ele autoral”, assume o chef, com vontade de “fazer sempre mais”, não descartando a possibilidade de vir a criar menus de degustação. “Isso é o que eu mais gosto de fazer e é uma coisa que no futuro talvez possa entrar para a carta. Tens o menu e tens também o menu de degustação”, antecipa. Mas, cada coisa a seu tempo. “Isso é mais exigente, requer mais trabalho, mais organização, mas é um dos objectivos. Há muito espaço, na verdade, para fazer muita coisa”, garante. Até porque o espaço do Taboão é também ele muito versátil e não se pode resumir apenas à cozinha de Rui Lemos.
Três em um
Paulo Pinto explica: “Quando olhámos para o edifício percebemos que estava muito bem dividido e percebemos que não podia ser tudo a mesma coisa”. A esplanada que salta à vista, em cima da relva, pertinho do rio, é servida pelo café e bar, que abre logo pela manhã e se estende pela noite. A meio, uma zona infantil, repleta de legos e outros brinquedos. “Desde o início que tínhamos uma grande vontade de criar uma sala para as crianças. Porque não é só em Coura que acontece isto, mas no país todo… As pessoas vão almoçar ou jantar com os filhos e é sempre difícil gerir a vontade de ficar ou sair da mesa”, desenvolve. “Acho que tanto os pais como os filhos ficam completamente à vontade aqui. Os pais têm um ambiente em que estão com a música, mais relaxado, podem beber um vinho, e estão sempre tranquilos porque têm contacto visual com os filhos, que estão na sala das crianças”, atesta.
Mesmo para comer, há no menu de Rui Lemos quatro pizzas, que não foram pensadas em exclusivo nos mais novos, mas que acabam por servir que nem uma luva. É no bar ao lado que são feitas, por Miro, o pizzaiolo vindo do Porto. No restaurante, há apenas quatro, aquelas nas quais o chef também deu o seu toque, como a pizza da casa (12,50€), com molho de tomate, mozzarella, beringela, queijo de cabra e mel DOP, ou a pizza paisagem (14€) com molho de tomate, queijo vegan e vegetais da época. No bar, são mais as opções, evidenciando-se, talvez, a pizza Miro (14€), que ao molho de tomate e à mozzarella junta pepperoni, shitake e azeitona. E há ainda a francesinha à moda do Porto (12€). “O Miro vem do Porto e já trabalhou no Capa Negra e numas quantas pizzarias de Matosinhos e do Porto. Aceitou vir para o Taboão ser o nosso pizzaiolo-francesinha-chef”, diz Paulo, sublinhando comprar todas as carnes no Mercado do Bolhão. “É o fornecedor das carnes das casas de francesinhas do Porto”, orgulha-se.
“A ideia do bar foi também para podermos responder de forma mais transversal. Abrimos das nove da manhã para o pequeno-almoço à meia-noite, e aos fins de semana até às duas da manhã. Esta paisagem maravilhosa está disponível durante todo o dia. É um privilégio total”, continua o responsável, que conta com mais um sócio no projecto, e ainda tem muitas ideias para pôr em prática. “O espaço pode receber muita coisa. [Por exemplo,] nós temos discos e temos livros, estamos a alimentar a estante e, apesar de não pormos sinalética porque queremos que seja minimal, está tudo à venda. Vamos fazer uma colaboração com a Snob de Lisboa que nos vai mandar livros para vendermos”, anuncia Paulo, antevendo a possibilidade também de receber eventos de poesia e literatura ou de música, como já aconteceu, tanto com concertos como com DJs, além de provas de vinho e até, quem sabe, jantares a várias mãos. Assim se supere, por agora, o maior desafio – transversal, na verdade, a todo o sector, e que passa pela dificuldade em contratar mão de obra qualificada. Em estudo, está uma possível colaboração com a Escola de Hotelaria e Turismo de Viana do Castelo.
“No fundo, arriscámos nesta loucura de lançar um conceito em Paredes de Coura que sabíamos que já era muito arriscado. Mas só esta ideia de que as pessoas vêm cá de propósito já é uma gratificação muito grande”, conclui Paulo Pinto. “E só estamos a começar.”
Praia Fluvial do Taboão, Formariz (Paredes de Coura). 911 151 959. Restaurante Qua-Dom 12.00-15.00/19.00-23.00. Bar Dom-Qui 09.00-00.00, Sex-Sáb 09.00-02.00
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