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Para Agostinho Santos (n. 1960, Vila Nova de Gaia), nada tem o magnetismo de uma folha em branco. Mal dá com os olhos no papel, é guiado por uma pulsão para desenhar e pintar. É o que acontece no momento em que se senta à conversa com a Time Out, no ateliê da residência artística na Casa do Vinho Verde, no Porto, e pega no lápis para rabiscar ao de leve num bloco.
E foi também o que aconteceu em 2017, quando encontrou um livro com 650 folhas em branco, onde passou a registar diariamente as suas preocupações e inquietações. “Como ser humano e como artista, não posso ser indiferente aos dramas do mundo”, diz. Ao longo de três anos, compilou centenas de obras que procuram “passar as monstruosidades humanas para o desenho e a pintura”, e que estão agora reunidas em Monstro, publicado a 22 de Julho pela Editorial Novembro.
A incursão pelo lado obscuro do ser humano não é nova. Nos últimos sete anos, Agostinho Santos tem vindo a explorar a “metamorfose do Homem Bicho”, que já lhe deu material para várias exposições. “Não sabemos bem onde acaba o humano e começa o animal”, aponta o artista, que usa a tela como espaço de reflexão sobre temas como a fome, a guerra, a pobreza, a crise dos refugiados, as questões ambientais, a xenofobia ou o racismo. “Com o volume dos anos e o aumento das atrocidades humanas, já não é bem Homem Bicho, mas um Monstro”, reconhece.
“Costumo dizer que não era o pintor que sou se não fosse o jornalista que fui”, explica. Foi na redacção do Jornal de Notícias que despertou para a intervenção social. O trabalho de investigação no terreno permitiu-lhe contactar de perto com o “submundo do Porto” — chegou, inclusive, a vestir o papel de sem-abrigo ou de arrumador de carros para melhor retratar essa realidade. “Muitas vezes saía do jornal e ia pintar até às quatro da manhã [sobre o que tinha feito]”, recorda.
A actualidade é um aspecto estruturante da obra de Agostinho Santos, que se vai alimentando dos pensamentos e emoções desencadeados pelas notícias. Assim, as suas telas não são um relato directo da realidade, mas um apanhado do que ela lhe transmite. Entre as inúmeras personagens disformes e coloridas há, contudo, alguns elementos referenciais dos sítios por onde passou nos últimos três anos, como o México, Nepal, Vietname, Itália, França ou Espanha. “O livro andava sempre comigo”, descreve o pintor.
Inicialmente pronto em Fevereiro, Monstro sofreu uma reviravolta com o início da pandemia. Acostumado a partilhar o ateliê com bichos, Agostinho Santos ganhou uma “nova obsessão”: procurar um rosto para o novo coronavírus. Então, realizou 15 desenhos (incluídos no livro, concluído a 26 de Maio), 10 telas de grandes dimensões e um mural gigante.
Ao contrário de alguns pares, Agostinho Santos não viu a criatividade estagnada. “A pandemia pôs-me achas na fogueira e eu comecei a arder ainda mais”, remata. E, enquanto este for o bicho central da nossa vida, há-de ocupar muitas folhas em branco. Para ver os restantes, é folhear Monstro (83€), edição que conta, ainda, com um conto inédito de Valter Hugo Mãe e um ensaio de Álvaro Domingues.
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