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“A nossa relação fundamental com os objectos pode resumir-se a guerra e propriedade”, defendeu o filósofo Michel Serres, em 1990, em Le Contrat Naturel. Neste livro, o autor problematiza a necessidade de criar uma espécie de contrato entre ser humano e natureza para tentar restaurar o equilíbrio e a reciprocidade das relações entre ambas as partes, conceitos que têm sido completamente negligenciados na sociedade moderna. No entender do pensador francês, o progresso contemporâneo resulta de uma sucessão de violências perpetradas pela acção humana na vida natural.
“[Nós achamos que] o mundo natural é uma coisa separada de nós e existe apenas para nos servir”, afirma Bruno Leitão, que foi buscar a Serres o nome para a sua mais recente curadoria, uma co-produção entre o Hangar – Centro de Investigação Artística e a Saco Azul Associação Cultural, do Maus Hábitos. Contracto Natural, exposição colectiva que pode ser visitada entre 20 de Novembro e 30 de Dezembro, reúne seis artistas portugueses e estrangeiros residentes em Portugal, cujo trabalho assenta na investigação e no questionamento do ecossistema político, económico e social em que estão inseridos.
“A sociedade em que vivemos é uma sociedade capitalista totalmente assente no extractivismo”, refere o curador sobre o modelo organizacional que dissemina a desigualdade pelos vários pontos do globo. “Os países que deveriam ser os mais ricos do mundo [devido à abundância de recursos naturais] não o são.” Bruno Leitão chama-lhes “zonas de sacrifício”, pois trata-se de áreas exclusivamente dedicadas à extracção de minerais ou metais preciosos, actividade com graves consequências para o ambiente e para as populações locais.
A Bolívia, a título de exemplo, é detentora de uma das maiores reservas mundiais de lítio – material muito procurado e usado no fabrico de baterias de telemóveis e de carros eléctricos –, e daquela que já foi considerada a maior mina de prata do mundo, e continua a ser um dos países mais pobres da América do Sul. Para abordar a discrepância provocada pelo capitalismo extractivista, o curador procurou “artistas que usam a arte como uma ferramenta crítica para pensar o nosso passado e presente e o(s) futuro(s) que podemos esperar”.
Andreia Santana, Jaime Lauriano, Jérémy Pajeanc, Yuri Firmeza, Diana Policarpo e Salomé Lamas integram a exposição com obras que atravessam performance, vídeo, escultura e fotografia. “Todos eles têm uma componente de investigação muito forte no seu trabalho”, comenta Bruno Leitão. Neste caso, debruçaram-se sobre acontecimentos e projectos extractivistas como as explorações marítimas dos séculos XV e XVI, abordadas por Jaime Lauriano na série “democracia racial, melting pot e pureza de razas”; a Fordlândia, “empreendimento industrial de Henry Ford nas margens do rio Tapajós, um afluente do rio Amazonas”, retratado em fotografias de Yuri Firmeza; a mina de ouro de La Rinconada, no Peru, onde centenas de homens estão sob o sistema de cachorreo – 30 dias de trabalho gratuito para a empresa mineira seguidos de um ou dois dias a extrair ouro para si mesmos –, retratada por Salomé Lamas no filme Eldorado XXI, entre outros.
Além da obra de Salomé Lamas, que deverá ser exibida em três sessões, a 20 de Novembro e a 9 e 23 de Dezembro, será mostrada a 9 de Dezembro, às 19.30, a performance Death Grip, de Diana Policarpo, apresentada pela primeira vez na Whitechapel Gallery, no Reino Unido, e resultante de um trabalho de investigação sobre a exploração do fungo Cordyceps e o seu impacto nas paisagens e nas populações.
A maior parte dos trabalhos já existia previamente e foi apenas reconfigurado para encaixar na narrativa de Contracto Natural, mas alguns deles estavam em processo e nunca tinham sido mostrados, como é o caso do de Yuri Firmeza. “Não sei se a peça terá um formato ligeiramente diferente se for mostrada daqui a um ano”, diz Bruno Leitão. A experimentação é, aliás, uma vertente essencial no trabalho que tem desenvolvido no Hangar. “Não vemos o espaço expositivo como sendo museológico, mas como um espaço de propostas.”
Esta exposição mostra o lugar cimeiro que a formulação de pensamento e a investigação artística ocupam na produção de arte contemporânea. Em muitos casos, ela continua a ser instintiva e espontânea, mas é muito mais suportada pela pesquisa. “Queremos pensar a arte como mais uma vertente da investigação e não cingi-la só à academia.”
Maus Hábitos. Até 30 de Dezembro. Seg-Sex 12.00-22.30. Entrada gratuita.