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Aretha Franklin foi uma artista titânica, com uma vida pessoal a condizer. Filha dilecta do pastor baptista C.L. Franklin, estrela da música gospel por direito próprio, oradora dotada e figura de proa do movimento pelos direitos civis na América, Aretha foi desde muito cedo apontada pelo pai como uma predestinada. C.L. pregava e cantava com a sua “voz de um milhão de dólares”, rodeando-se de talentos do gospel e da soul como Clara Ward, Dinah Washington e Art Tatum, artistas que a pequena “Re” idolatrava e copiava. Ela aprendia depressa e bem. Mas também se expunha a uma vida de excessos e boémia pouco dada a pré-adolescentes. A mãe, a pianista Barbara Siggers, havia morrido precocemente, quatro anos depois de ter saído de casa, farta das muitas indiscrições amorosas do marido. Aretha tinha dez anos quando ficou órfã de mãe. Aos 12, engravidou pela primeira vez. Aos 14, pela segunda. Os miúdos ficavam ao cuidado da avó e das irmãs, Erma e Carolyn, que também acalentavam o sonho de singrar na indústria musical – sentindo-se deixadas para trás. A família era tanto um abrigo como um poço de tensões e expectativas desmedidas. Ainda adolescente, casou-se com Ted White, que se revelaria um marido abusivo, apesar do papel importante que desempenhou na sua carreira. O casamento seguinte também não durou.
A “rainha da soul” não gostava de falar sobre a sua vida privada. Gostava de controlar a narrativa, contar a sua história nos seus termos. Tinha a exacta percepção de que, sendo mulher e negra nos EUA das décadas de 50, 60 e 70, só com uma vontade e uma acção férreas poderia ser dona do seu próprio destino. E foi sempre assim que agiu. Desprezava quem ia mais longe do que o que ela havia planeado. Aconteceu com David Ritz, quando o autor, que a tinha ajudado a escrever a autobiografia (Aretha: From These Roots, 1999), decidiu escrever e publicar uma biografia (Respect: The Life of Aretha Franklin, 2014) muito mais sumarenta do que esse primeiro livro. Sentiu-se traída. Aretha também quis assegurar-se de como viria a ser representada no cinema. Até à sua morte, em 2018, monitorizou Respect, biopic que chegará aos cinemas em Agosto. Aliás, escolheu ela mesma a protagonista: a oscarizada Jennifer Hudson (o papel de C.L. Franklin fica a cargo de Forest Whitaker). Nada disto se passou com Genius: Aretha, a terceira temporada da série antológica da National Geographic que retratou anteriormente Albert Einstein e Pablo Picasso. Este tomo – que se estreia em Portugal nesta sexta-feira, 4 de Junho, no Disney+ – escapou em absoluto ao controlo da família Franklin, que por isso lhe lançou um anátema.
Nos EUA, onde a temporada se estreou em Março, não há só quem dê razão aos filhos e netos de Aretha, que dizem não ter sido consultados nem conseguido chegar à fala com os produtores, apesar de inúmeras tentativas. Há mesmo quem questione a necessidade da série, quando está para sair a biopic autorizada, que começou a emergir há muito, muito tempo – em 2008. Aliás, Aretha Franklin não era sequer a protagonista originalmente prevista para a terceira temporada de Genius – era a escritora Mary Shelley (a quarta, já se sabe, debruçar-se-á sobre Martin Luther King). E o facto de as duas produções terem corrido em paralelo tem consequências que até o mais desligado dos espectadores vai reparar: “Respect” e “Think”, por exemplo, são canções completamente arredadas da série. O que acontece porque os seus direitos estavam reservados para o filme. Só isso faz mossa. Mas os melómanos mais exigentes também hão de reparar que a série recorre a liberdades cronológicas para consolidar o drama, e é omissa face a factos e acontecimentos de monta.
Por outro lado, o trabalho da actriz e cantora Cynthia Erivo, que interpreta Aretha em toda a sua dimensão – isto é, além de encarnar o carácter obstinado da “rainha da soul”, também empresta voz às canções –, é motivo suficiente para dar uma oportunidade a esta criação de Suzan-Lori Parks (cujos pergaminhos incluem ter sido a primeira mulher negra a vencer o Pulitzer de ficção). É com Erivo que se presenciam momentos definidores da carreira de Aretha, alguns dos quais marcantes para toda a música popular. Seja o encontro criativo com Jerry Wexler (David Cross) ou a gravação de Amazing Grace. A jovem Aretha é interpretada pela estreante Shaian Jordan, num papel de menininha envergonhada e sem a autoconfiança que viria a ser também imagem de marca da cantora já adulta. Entre as duas épocas, há um elo de ligação permanente: C.L. Franklin, uma personagem poliédrica encarnada por Courtney B. Vance, que funciona como o co-protagonista oficioso da série. O que é óptimo para conhecer alguém que foi muito mais do que o pai de Aretha Franklin.
Disney+. Sex (estreia).
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