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Se os estudos anatómicos que temos diante de nós, de elevado detalhe e rigor científico, viessem sem assinatura, dificilmente os associaríamos a Maria Helena Vieira da Silva (1908-1992), pintora que se inscreveu na história da arte do século XX pelas originais composições abstractas e geometrizadas de grandes cidades. Mas, primeiras impressões à parte, não há dúvidas de que esta é uma das amostras mais antigas da vontade de experimentação e descoberta que moldaria o seu percurso.
“Ela começou a produzir muito cedo, desenhava, pintava, fazia colagens, mas deitava tudo fora”, revelou Marina Bairrão Ruivo, directora da Fundação Arpad Szenes-Vieira da Silva, durante a visita inaugural. Vieira da Silva. Um Olhar Singular, exposição da qual é curadora, abriu a 8 de Março, mas fechou quase de imediato devido à pandemia. Reabriu a 1 de Junho a par do museu e pode ser vista até 26 de Julho na Casa-Museu Teixeira Lopes, em Vila Nova de Gaia. Há, claro, medidas de segurança a cumprir: uso obrigatório de máscara, higienização regular das mãos, lotação máxima de cinco pessoas e distanciamento de dois metros entre elas, e limite de duração da visita a 20 minutos.
Os esboços, produzidos por Vieira da Silva quando frequentava aulas de Anatomia na Faculdade de Medicina de Lisboa, estão entre as 64 obras situadas entre 1926 e 1986 apresentadas na exposição, e reflectem a sede de conhecimento que está na base da sua pesquisa criativa. “Vieira da Silva bebeu de tudo e concebeu uma obra que prima por ser original”, contextualiza.
Apesar de ter crescido no seio de uma família letrada e culta e de ter estudado desenho, pintura e música desde criança, Vieira da Silva permanecia insatisfeita com o panorama artístico e cultural português dos anos 1920. Em 1928, a artista trocaria Lisboa por Paris, cidade repleta de museus e galerias, que era, então, o epicentro de correntes artísticas como o surrealismo ou o cubismo.
Fascinada pela arte que brotava em cada esquina, Vieira da Silva frequentou várias academias na capital francesa, sem nunca, contudo, se filiar a nenhum movimento. Em alternativa, começou a trilhar um caminho muito próprio que “traduzia o desejo de compreensão do espaço”, conceito que aplica aos espaços interiores nesse período. “É no ateliê que reavalia a pintura e a sua relação com o mundo exterior.”
Nesse sentido, não é de admirar que haja retratos entre as obras dos anos 1930. A pintora produz telas onde aparece em casa ou no ateliê, sozinha ou com o marido, o pintor húngaro Arpad Szenes — com quem partilha uma vida inteiramente dedicada à pintura até à sua morte em 1985 —, mas volta-se progressivamente para o exterior e para as grandes cidades. Então, passa a focar as paisagens urbanas do ponto de vista da estrutura, recorrendo a formas como a grelha e a espiral, e da perspectiva, usando a quadrícula e o losango.
A pesquisa abstraccionista é interrompida em 1940, altura em que Vieira da Silva e Arpad Szenes se exilam no Brasil, depois de tentarem refugiar-se em Lisboa em 1939, face à ameaça da guerra em Paris. Apesar de ter casado pela Igreja, o governo de Salazar não restituiu a nacionalidade portuguesa à pintora, perdida aquando da sua união com o artista, húngaro judeu. Ambos apátridas, fixam-se no Rio de Janeiro até 1947, onde pintam, expõem e ensinam.
Este período põe a claro a convergência entre a vida e obra de Vieira da Silva, através de quadros melancólicos que espelham “a preocupação com o conflito na Europa, as dificuldades económicas e a falta de reconhecimento no seu trabalho”. Embora a sua pintura não se reduza a uma transposição de acontecimentos, estes influenciam, em várias alturas, o que produz e como o produz.
“Lisboa aparece pintada de memória de forma recorrente”, mas, apesar de ter maior expressão em contexto de nostalgia, a cidade natal da artista é uma referência permanente na sua criação. Assim, cruza a evocação de azulejos, calçadas ou da luz de Lisboa com a estética e os valores da modernidade que germinam em Paris.
Esta dupla pertença manifesta-se na busca de Maria Helena Vieira da Silva por um lugar e um público para a sua arte. A sua primeira exposição individual dá-se em 1933, no Salon de Paris, e, enquanto é celebrada em França — o governo compra-lhe obras nos anos 1950 e atribui-lhe, em anos seguintes, prémios importantes como o Grand Prix National des Arts, o primeiro entregue a uma mulher —, permanece esquecida em Portugal. Só depois do 25 de Abril a sua obra será difundida.
Ainda hoje dividimos o génio (e a nacionalidade) de Vieira da Silva com França, que recentemente deu o seu nome a uma rua em Paris e escolheu dois quadros seus para o vestíbulo do Palácio do Eliseu. Esta retrospectiva, que inclui ainda um núcleo fotobiográfico, convida-nos a redescobrir o vasto legado que também é o nosso. “É uma mulher muito importante para o nosso país. Temos de a assumir.”
Casa-Museu Teixeira Lopes. Rua Teixeira Lopes, 32 (Vila Nova de Gaia). Até 26 de Jullho. Seg-Dom 09.00-12.30/14.00-17.30. Grátis.
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