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Vivemos num mundo obcecado com rabos. Dos videoclipes às letras de músicas, dos ginásios desta vida às calças que moldam os glúteos, das cirurgias e mezinhas para aumentar o rabo (incluindo injecções de caldos Maggi) às fotografias que circulam nas redes sociais. “Eu faço scroll no meu Instagram e são só rabos a mexer. Vês um videoclipe e é um homem a cantar e montes de mulheres de costas”, diz Anaísa Lopes, aka Piny, coreógrafa e bailarina que apresenta a performance HIP. a pussy point of view. no Rivoli, sexta 10 e sábado 11. Uma co-produção do Teatro Municipal do Porto em estreia na Semana+ do festival DDD+FITEI.
Foi a partir desta obsessão com rabos e com a anca, transversal a vários países e contextos sociais, que Piny decidiu abordar uma série de questões que acabam por estar interligadas: “a sobre-exposição do corpo feminino e a forma bárbara como o corpo da mulher negra é exposto”, a “deturpação de danças rituais e de fertilidade em danças altamente sexualizadas”, a exotização e apropriação dessas mesmas danças, e “como usufruir dos nossos corpos”, reivindicando espaço, poder e prazer, sem perpetuar uma lógica patriarcal e sexista. Neste solo, Piny tenta desconstruir estas problemáticas, exacerbando-as. “Eu não me estou a queixar, eu estou a incorporar um papel de ser quase esta pessoa que ofende. Isso faz com que eu acabe o solo emocionalmente destruída.”
Arquitecta de formação, Piny entrou na dança através das danças do Médio Oriente, que mais tarde trocou pela breakdance e pela cultura hip-hop. Em 2004, criou uma crew só de mulheres, a ButterflieSoulFlow, com a qual se foi aproximando de estilos como o house, waacking, vogue e tribal fusion belly dance. “Na tentativa de juntar isto tudo” fundou, em 2012, a companhia Orchidaceae Urban Tribal. Como intérprete, colabora ou já colaborou com coreógrafos como Marco da Silva Ferreira, Tânia Carvalho e Victor Hugo Pontes, mas boa parte do seu percurso tem sido feito fora deste circuito institucional da dança contemporânea, e com circulação fora do país. “Esta é a primeira vez que apresento uma coisa maior, institucionalmente, em Portugal”, diz Piny. “Sem muitas pretensões, não tentei criar um objecto artístico, tentei dizer coisas. É um grito.”
Os principais mecanismos discursivos da peça são os testemunhos de algumas mulheres, sobretudo de África, e a desconstrução de canções com letras altamente sexistas sobre o corpo da mulher, num corte e recorte operado pelo músico Pedro Coquenão, aka Batida. Na pesquisa para a parte coreográfica, que integra linguagens como o dancehall, funk carioca, danças tahitianas e danças marroquinas, entre outras, Piny contou com a contribuição de várias especialistas, entre elas a cantora e bailarina Blaya e a bailarina e coreógrafa angolana Stella Capapelo.
“A questão é que, no final, os movimentos são basicamente os mesmos, feitos de formas diferentes e com músicas diferentes. E a origem é toda, ou quase toda, em África”, explica Piny, cujos pais são angolanos. Muitos destes movimentos têm origens em danças rituais, que foram sendo deturpadas nas suas intenções e simbologias, levando a “algo com muito pouco sumo e contexto”. E tudo isto gera um conflito interno – porque também queremos dançar isto; porque, afinal, “mexer a anca e rebolar é essencial para toda a gente, mulheres e homens".