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Na Quinta de Soalheiro o Alvarinho vindima-se em família

Há 50 anos, esta quinta produtora de Vinho Verde plantava pela primeira vez em Melgaço uma vinha de forma contínua. E isto mudaria para sempre o padrão da bonita manta de retalhos de que é feito o Minho.

As vindimas na Quinta de Soalheiro
©MMPAs vindimas na Quinta de Soalheiro
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“Quando vês assim oito carros estacionados, todos em fila, em princípio há vindima”, atira João Almeida, da comunicação da Quinta de Soalheiro, ao volante do Volvo da empresa, contornando com destreza as ruas sinuosas e graníticas de Alvaredo, zona campestre e raiana de Melgaço. Assim que subimos a ladeira em terra batida que dá acesso à vinha, as vozes dos vindimadores atravessam a folhagem espessa das videiras, pontuadas pelo clique seco das tesouras e das uvas a cair nos cestos.

“A uva este ano está gordinha. O que nasceu está salvo”, diz Maria João Cerdeira, gestora da marca e filha de João António Cerdeira, que há 50 anos plantou a primeira parcela de vinha contínua da casta Alvarinho em Melgaço. Maria João ergue no ar,  observando-o em contra-luz, um cacho pequeno (típico da casta) e muito sumarento. “Os cachos estão muito bonitos, Margarida”, elogia. 

Margarida Fernandes trabalha no departamento financeiro da Quinta de Soalheiro
©MMPMargarida Fernandes trabalha no departamento financeiro da Quinta de Soalheiro

Margarida Fernandes trabalha no departamento financeiro da Quinta do Soalheiro e, juntamente com o marido (e os três filhos pequenos), é uma das mais de 180 famílias que fazem parte do seu Clube de Vitivinicultores, explorando uma parcela de vinha na região demarcada dos Vinhos Verdes de Monção e Melgaço. Em Setembro, no mês mais agitado e entusiasmante para quem se mete nestas andanças, vendem as suas uvas, fruto de um laborioso ano de trabalho, à Quinta de Soalheiro. 

“Os meus sogros já tinham vinha há muitos anos. Começou por ser um trabalho complementar até que começaram a viver só disso”, conta Margarida, que espera ter, juntamente com o marido Duarte, o mesmo destino. “Tenho esta vinha com o meu marido há dois anos. Temos os dois outros trabalhos mas esperamos um dia dedicar-nos só a ela. Há que manter a tradição, ter uma vinha é uma coisa cultural”. Além desta com 5 mil metros quadrados, no ano passado plantaram um hectare de vinha em Parada do Monte onde esperam, daqui a dois anos, ter uma vindima a 100%.

Os malucos das parcelas contínuas e os campos que pareciam cemitérios

O sol aproxima-se do pino e José Carvalho achega-se para dois dedos de conversa. É um homem precavido. Nas mãos calça um par de luvas que as impedem de ficar pegajosas com a seiva que a ramagem solta quando leva uma tesourada. “Eu já sabia que o senhor José estava aqui”, ri João. “A mota do senhor José é como o carro do Batman”, graceja. “É… A minha mota denuncia-me sempre”, sorri o outro. Uma Vespa lustrosa, entre baldes e tractores, brilha à entrada dos campos.

José Carvalho testemunhou a plantação da primeira vinha em parcela contínua da Quinta de Soalheiro em 1974, numa altura em que trabalhava com o pai de Maria João na repartição de Finanças de Melgaço. “Foi ele que me incentivou a plantar a minha vinha assim. Antes tínhamos a vinha tradicional, em bordadura, aquela que ficava nas margens dos campos. Mas convencer os meus pais, ui, foi muito difícil. Achavam todos que éramos malucos”, relembra José, acrescentando que nessa altura adoptaram também a vinha em cruzeta. “Por causa do aspecto que a vinha tinha, os vizinhos diziam que os campos pareciam um cemitério. Diziam assim: ‘Estão a estragar os campos. Campos que davam milho, couves, onde havia de tudo’”, sorri e encolhe os braços.

José Carvalho está reformado, mas mantém a sua vinha
©MMPJosé Carvalho está reformado, mas mantém a sua vinha

João António Cerdeira foi o precursor de uma prática que ao longo dos anos se propagou pelos campos do concelho. Aos poucos, as ramadas altas nas extremidades dos terrenos foram sendo substituídas por videiras ordeiras, que se acomodaram no lugar onde outrora existiram hortas e pequenas plantações, mudando assim o padrão da bonita manta de retalhos de que é feito o Minho. “No Minho é impossível teres um latifúndio. Ninguém te vai vender terras. Ter terra é importante. O que existe aqui são minifúndios, minifúndios não, microfúndios”, adverte Maria João. 

Em 1982, o vinho saído da primeira vinha contínua, a Soalheiro, começou a ser um sucesso e dada impossibilidade de se expandir territorialmente, João António Cerdeira desafiou familiares e amigos a seguirem-lhe as pisadas, comprando-lhes depois as uvas. E o que inicialmente poderia ser encarado como uma dificuldade, rapidamente se tornou na mais importante e determinante característica da marca: a sua versatilidade. 

A Quinta de Soalheiro tem hoje mais de 20 tipos de Alvarinhos com diferentes perfis e isto só é possível graças às diferentes idades das vinhas, aos diferentes modos de produção, às diferentes orientações solares, às diferentes altitudes. Têm parceiros e parcelas que vão do vale do rio Minho, a 50 metros de altitude, às montanhas a 400 metros de altitude. Em 2019, plantaram ainda a vinha de Alvarinho mais alta de sempre. Fica na Branda da Aveleira, a 1100 metros de altitude, no solo xistoso de um antigo glaciar com quase um milhão de anos, perto do Parque Nacional da Peneda-Gerês. “O Cota 27 [uma edição de 2022], por exemplo, é um vinho de aluvião, um vinho que vem de vinhas que crescem junto ao rio”, acrescenta Maria João.

As vindimas na Quinta de Soalheiro
©MMPAs vindimas na Quinta de Soalheiro

Quando a vindima terminar aqui, nos terrenos de Margarida e Duarte, o senhor José, tal como todos os outros, rumarão de tesouras em punho para vinhas vizinhas e continuarão a vindimar “em família” até não restar um único cacho ao dependuro. 

“Por aqui encontras de tudo, professores, financeiros, malta que trabalha na conservatória”, diz João. “Para uns é uma paixão, como é para o senhor José que já está reformado, que já só precisa disto para fazer musculação”, ri. “Para outros é um rendimento extra que ajuda a pôr filhos na universidade, a trocar de carro ou a renovar a casa de banho. O Alvarinho tem este impacto sócio-económico incrível”.

Merendas na vinha e provas de mostos

Maria João vai buscar a cesta de vime que pousara à sombra. De dentro tira uma sandes de presunto e uma garrafa de Soalheiro clássico, fresco, aromático e elegante, que cai que nem ginjas depois de uma hora de vindima sob o sol quente de Setembro. Este é o segundo ano que a Quinta de Soalheiro abre as suas portas ao público no mês das vindimas e convida curiosos a participar na apanha da uva, juntamente com uma das muitas famílias que compõem o seu clube de vitivinicultores.

O dia começa às 10.00 com a distribuição de tesouras e com uma breve introdução ao território enquanto se aprecia a vista panorâmica sobre o vale do Alvarinho, o rio Minho e a vizinha Espanha. Às 10.30 apanham-se as uvas, sujam-se as mãos, conversa-se com quem anda nesta poda há já várias décadas. A meio da manhã recuperam-se, então, as energias com uma merenda na vinha, que é seguida de uma visita à adega e à Cave da Inovação, uma espécie de incubadora de ideias onde se faz investigação e se pensa o futuro, e onde explicam como é feito o início do processo de vinificação. 

As vindimas na Quinta de Soalheiro
©DRAs vindimas na Quinta de Soalheiro

Ainda antes do típico almoço de vindima – que acontecerá numa mesa corrida juntamente com o pessoal da adega que, por estes dias, trabalha de forma intensa – há tempo para uma divertida prova de diferentes mostos de Alvarinho e dos vinhos que eles originam. Um mosto de Alvarinho do Vale, por exemplo, que resulta no Alvarinho Clássico, apresenta-se doce, frutado, bastante complexo e com uma certa acidez. Já o mosto de Alvarinho de altitude, que dá origem ao Soalheiro Granit, é mais herbáceo e fresco. Prova-se ainda a base de Espumante para o Espumante Bruto Alvarinho e o mosto de Alvarinho de Vinhas Velhas, que resulta no Soalheiro Primeiras Vinhas, com um sabor mais intenso a mel e a marmelos. O programa tem um custo de 150€ por pessoa.

Um perdigueiro guloso e uma enóloga dedicada

Sheila tratou de encher as barrigas do pessoal da adega com carne assada, arroz, batatas e três sobremesas – um bolo, um pudim e um cheesecake – que Jonas, o perdigueiro velhinho de Maria João, que também é veterinária, cobiçou durante toda a refeição. “Nestas alturas abrem-se grandes garrafas e provam-se vinhos de outras quintas”, diz João. “Nós é que já chegámos tarde”, graceja enquanto pega numa garrafa vazia.  

Depois dos cafés, retoma-se a azáfama. As empilhadoras, num vaivém, vão deslocando contentores carregados de uvas que os tractores – das 17 quintas que estão a vindimar naquele dia – vão trazendo uns a seguir aos outros.  

A "manta de retalhos"
©DRA "manta de retalhos"

“O trabalho que acontece hoje começou há um mês, porque tivemos de fazer uma compilação de todas as parcelas dos nossos fornecedores. Temos de registar tudo para depois fazer a classificação, que é o mais importante”, começa por explicar Asun Carballo, elevando a voz para se fazer ouvir sobre as prensas que trabalham a todo o gás. “A partir do momento em que temos esse conhecimento sobre todas as parcelas dos nossos viticultores, fazemos a classificação em função se são vinhas de vale, ou seja, abaixo dos 200 metros; ou vinhas de montanha, acima dos 200 metros, que podem ir até quase aos 500 metros altitude; ou vinhas velhas, que podem estar nos dois lados”, acrescenta a enóloga que cresceu em Arbo, na margem galega do rio Minho, e da casa dos pais via, todos os dias, a adega da Quinta do Soalheiro.

Todos os dias, Asun programa a quantidade de quilos de uvas que vão entrar nas prensas, em função da sua tipologia. “O que procuro é agrupar a tipologia de viticultor. Se é para Vinhas Velhas ou para Granit, por exemplo, para poder tirar o máximo rendimento das nossas prensas. Imagina que temos um viticultor que só tem 2 mil quilos de Vinhas Velhas. Não tenho capacidade de prensar só 2 mil quilos, por isso, procuro outros fornecedores que também têm Vinhas Velhas para poder agrupar e assim aproveitar exclusivamente. E é tudo separado. Agrupo tudo numa única prensa para poder destinar Vinhas Velhas a um único depósito. E essa é a riqueza do Soalheiro”.

De olhos postos no vale, Maria João solta uma confissão que viaja na brisa: “Para mim isto é bonito”. “Não é só para ti que é bonito. É para toda a gente que tem bom gosto”, remata João.

Vindimas na Quinta de Soalheiro
©MMPVindimas na Quinta de Soalheiro

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