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Nesta peça, vamos dançar até “encontrar na noite uma paz qualquer”

Manuel Moreira é voz e corpo que dança para mostrar que a noite “é um sítio de paz, não é só um sítio de alienação”. ‘Batida apresenta: Um DJ + Um Microfone’, estreia de Pedro Coquenão (Batida) na encenação, cruza o teatro, o stand up e o clubbing. Mostra-se esta sexta-feira na Mala Voadora, no Porto.

Joana Moreira
Escrito por
Joana Moreira
Jornalista
Batida apresenta: Um DJ + Um Microfone
DRBatida apresenta: Um DJ + Um Microfone
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Pedro Coquenão, nome da electrónica de inspiração africana com a assinatura Batida, tem desenvolvido trabalho na área da música, rádio, dança, artes visuais e plásticas. A forma como se espraia por tantos territórios criativos faz com que agora que se estreia na encenação não surpreenda que desafie os limites do que é entendido como uma peça de teatro. Onde há caixas, Coquenão destapa-as, recusando rótulos e cruzando códigos e referências. É o que acontece em Batida apresenta: Um DJ + Um Microfone, que se mostra esta sexta-feira, 25 de Novembro, em apenas duas apresentações no espaço da Mala Voadora, no Porto. Mas é possível que venha a viajar. 

Percorrendo o teatro, o stand up e o clubbing, Batida apresenta “uma peça que aborda temas como o amor pela pista de dança, a promiscuidade sexual, a saúde mental, o racismo e, inevitavelmente, o colonialismo, quase sempre numa perspectiva autobiográfica”. É isto o que diz o comunicado enviado às redacções para promover a peça. Uma semana antes de levar o texto à cena, Coquenão escuda-se a revelar muito mais da dinâmica do espectáculo. "Tenho-me furtado a comprometer com coisas fechadas precisamente para permitir que algo possa mudar no processo, que algo possa acontecer com a sala", diz. 

O processo é a dança orquestrada sobre o texto que nos últimos dias vem fazendo com Manuel Moreira, o actor que interpreta a única personagem em palco. Para efeitos históricos, o encontro entre ambos deu-se quando Coquenão assinou a banda sonora da peça da Mala Voadora Universal Declaration of Human Rights, encenada por Jorge Andrade, e na qual Manuel participava. Para efeitos dramáticos, a justificação é outra. "O Manel é super talentoso e temos muitos pontos de contacto, mas ele foi escolhido por ser Gémeos e ter ascendente em Bola de Espelhos", diz-se em cena. "Isso é o mais importante", troça o encenador. 

"Sempre tive a necessidade de ir a muitos campos não só para me esclarecer a mim próprio se é possivel de facto misturá-los todos, como para saber que o posso fazer, dominar a linguagem, e honrar cada um desses passos", explica Coquenão. “O que vou fazendo em termos de trabalho não tem propriamente um sítio fixo. Não é necessariamente só música, não é necessariamente só cinema, não é necessariamente só documentário. O único sítio onde ainda não tinha estado era no processo do teatro. E o processo do teatro é estar com as pessoas do teatro.” Pessoas como Manuel Moreira, para quem este projecto também comporta uma novidade no seu percurso. “Nunca tinha feito um monólogo, nunca fiz stand-up, nunca tinha estado sozinho em palco”, diz por sua vez o actor.

Esta sexta-feira estará sozinho na black box da Mala Voadora, no Porto, aqui transformada num clube. Contará “histórias da noite, ideias sobre a actualidade e reflexões sobre crescimento ou degradação pessoal e da sociedade”. Novas datas? É possível. "Gostava que pudesse ser feito se ficarmos todos felizes com o espectáculo. Conforme esse sentimento eu diria que era bom levá-lo para Lisboa, a seguir, ou para outro lugar no país, ou até poder apresentá-lo noutro país onde até por exemplo as piadas do clubbing, que estão metidas em código, e outras de questões universais como a luta anti-racista ou os direitos LGBT, o que for, são coisas que não é preciso falar muito, é só activar, é só repetir", afirma Coquenão. O encenador e o actor ajudam-nos a antecipar o espectáculo (na medida do possível).

Pedro Coquenão
DR

Que personagem é esta?
Manuel Moreira:
Há aqui um personagem base real que é uma pessoa real, mas, na prática, este personagem vai-se tornando um bocadinho numa fusão entre mim e ele [Coquenão] e um personagem que não é nenhum de nós. Estamos a construir um bocadinho uma coisa que está algures entre o stand up e o teatro mais clássico e uma pequena festa que vamos dar para o público. É uma hora de clubbing que vamos proporcionar às pessoas, com música, onde não fazemos ideia se elas se vão soltar ou não porque é um formato que não é comum. É uma novidade para nós os dois, estamos os dois num terreno novo. 

Se ambos dão origem à personagem, cruzam-se em determinados pontos?
MM:
O Pedro está sempre a brincar a dizer que faço muito trabalho de pesquisa para este espectáculo porque de facto isto passa-se num ambiente de clubbing e falamos sobre o clubbing e sobre a dança e a importância da música para unir as pessoas e como espaço de transcendência e como eventual terapia. O clubbing pode ser muita coisa. Eu de facto saio muito à noite, é uma das minhas coisas preferidas de fazer, dançar. É provavelmente a forma mais bonita e mais incrível que até hoje as pessoas inventaram de estar juntas. Esta coisa de as pessoas se reunirem num espaço e dançarem todas juntas, mexerem os corpos todas juntas mesmo sem se conhecerem. Não há mais formas de entretenimento que façam isso dessa maneira mágica. Já houve alturas muito complicadas na minha vida, de sofrimento pessoal, em que continuei sempre a sair. E aquele momento da semana era o momento em que chorava ou pensava na vida. E o Pedro, apesar de não conhecer esse meu lado quando me escolheu, depressa percebeu que era uma pessoa que estava confortável nesse ambiente que vamos tentar reproduzir. Mas depois tenho o meu lado teatral e técnico que achou que eu podia trazer ao lado mais técnico do espectáculo. A troca de afinidades tem sido bastante intuitiva. 

Pedro Coquenão: Pode não ser evidente, mas a escolha do Manel na minha cabeça é óbvia. O que o destacou é a ligação musical, a parte técnica, sim, mas depois, ao conversar, há coisas que descobri: a parte da dança. Sendo esta peça muito sobre dança, o facto de o Manel ser quase o oposto de mim, eu entro no imaginário da noite como fornecedor de som e observador, e o Manel é como pessoa que dança só. Essa neutralidade dele em relação ao espaço é perfeita. Na realidade o que gostava que a peça passasse para quem assiste é essa proximidade entre quem está a ver, quem está a apresentar e representá-la. Se pusermos a figura do DJ como central, o DJ fica ligeiramente acima, fica distante porque não dança assim tanto, e quando dança mais valia não dançar. Há uma distância e uma separação entre dois mundos de que não gosto e que aconteceu muito nos últimos anos no mundo do clubbing, onde de facto o DJ foi ganhando uma importância até performativa que é um bocado dispensável, a meu ver. Não é o que nos traz mais juntos.

Na página do texto que partilharam diz: “Imagino que não estejam habituados a bater palmas a meio de uma peça, mas é o que se faz quando entra um comediante de stand up”. Na verdade há peças em que isso acontece, nomeadamente de revista, em que o pano corre para a mudança de cenário e o público bate palmas. Esta comparação com o stand up é para frisar o lado cómico do show, ou que o público deve rir?
PC:
Não sei se vão rir ou não, mas nós já nos rimos e isso é o principal. É como um cozinheiro, tem de provar a comida e gostar. Sim, essa frase não é por acaso nem te mandei a página 5 por acaso. É porque ela pretende, logo ali, resumir a coisa, apresenta uma pessoa, o actor, apresenta o personagem, e define isso, a relação entre o teatro e a comédia, mas não o teatro de comédia. Há esta linguagem que é o stand up comedy, que tem ocupado palcos e, se voltarmos à pandemia, muita gente viu especiais de comédia como nunca viu na vida. Respeito muito essa disciplina. Desde criança, desde miúdo, aquilo que mais queria era fazer parte do Saturday Night Live ou do Conan O'Brien, escrever textos para lá e participar. Cheguei a procurar informação e a querer ser estagiário, tentei dentro dos meus limites criar condições para isso. Não tive, nem financeiras nem humanas. Se pensarmos em comédia em Portugal, ou em stand up comedy, só alguém muito arrogante é que iria pôr o Levanta-te e Ri de fora. Esse registo foi, na maior parte das vezes, muito diferente daquele que é o registo do stand up comedy como o conheço e como o aprecio. Foi feito quase sempre num registo de contador de anedotas, que é uma coisa muito daqui. O que gosto no stand up comedy é que ele indicia uma interaação, e ela às vezes acontece, mas, na realidade, ela é muito encenada. O que tu dominas é uma linguagem que dá espaços para o riso, e que faz cócegas ao público, às vezes até se pode plantar alguém que te faz uma pergunta que já estava encenada. O stand up comedy no caso americano tem essas coisas todas. É minimal na encenação. Já vi pessoas muito grandes, um [Ricky] Gervais, ou o que for, a fazer apresentações sofríveis do ponto de vista cénico. É uma coisa que não entendo. Ainda há pouco tempo vi o writer do Chappelle que fez toda uma peça que funcionava com luz e com sombra, já há essas preocupações. Há fusões muito interessantes a acontecer. Há um potencial de cruzarmos coisas e fazer coisas menos monofacetadas. Isso na folha é um piscar de olho: ‘pessoal, isto é teatro, como podem ver, mas também é stand up comedy, como podem ver’. 

Sendo a base deste trabalho bastante autobiográfica, falar da experiência pessoal para criar algo artístico implica sofrimento, é purga ou é apenas uma forma de criar?
PC:
Às tantas é as três. Sim, é purga. Éuma forma natural de criar porque sigo aquele princípio básico, que é o de contar a história que tu conheces, aquela que tu consegues sustentar mais, e então podes fazer jazz sobre a tua história porque depois voltas sempre à base. E a outra era...

Se há sofrimento.
PC:
Sim, posso ser franco, se calhar é muito pessoal, mas sim, já houve partes do texto, então com música, momentos em que estupidamente senti-me um bocado uma Cristina Ferreira, em que me emocionei com a minha própria história. Mas depois voltei, fiquei equilibrado e continuei a escrever a história. Emocionei-me em alguns momentos, claro, a partilha vem de um sítio super profundo. A coisa mais profunda que consegui encontrar para escrever aquela história está lá, mas depois tentei tirar toda a gordura e toda a auto-flagelação. Ao ver o Manel a ler obriga-me ainda mais a melhorar o texto. Espero que no fim o texto fique com essa coisa não de estar a ir de um [sítio] superficial para um profundo, mas sim vir de um sítio profundo, não a caminho de um superficial, mas de um que nos faça juntar e unir. E não tão de [um lugar de] culto da minha própria pessoa.

Mala Voadora. Rua do Almada, 277 (Porto) 25 Nov. Sex, 17.00 e 22.00. 5€ (3€ para estudantes). Reservas por telefone (934 152 264) e e-mail (reservas@malavoadora.pt). 

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