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Na idade dos porquês, vemos tudo o que é diferente com curiosidade. Apontamos o dedo, fazemos perguntas e tecemos comentários sem filtros e sem julgamentos, porque a pureza do olhar permite-nos encarar a diferença como mais uma característica e não como um defeito. Mas rapidamente a sociedade entra em acção para nos tapar a boca, inibida pelos preconceitos e tabus que foi desenvolvendo em torno de tudo aquilo que foge à norma. “Se uma criança vê outra sem um braço, o que ela diz é ‘aquele menino não tem braço’ e na maioria das vezes o que ela ouve é ‘não pode falar isso’”, introduz Henrique Amoedo, fundador do Dançando com a Diferença, grupo criado em 2001 para trabalhar a dança com pessoas em risco de exclusão social.
O silenciamento e exclusão de corpos e vozes diferentes deve-se às pré-concepções sociais formadas com base no desconhecimento e subsequente incompreensão da pessoa com deficiência. “A gente vai desconstruindo isso com a presença, o estar, ver e conviver com as pessoas, e aí passa a ser normal”, afirma o director artístico da companhia madeirense, que desde 2014 é Projecto Residente do Teatro Viriato, em Viseu. “O objectivo era ter pessoas com e sem deficiência dançando juntas para mudar a imagem social das pessoas com deficiência e produzir espectáculos com qualidade estética e artística.”
A implementação de um espaço de fala e representatividade para pessoas com deficiência, a sua profissionalização através da arte e a criação de referências que sirvam de espelho tanto ao público como a futuros bailarinos e artistas, são algumas das directrizes do trabalho artístico e pedagógico que tem sido feito nos últimos anos no teatro e em escolas e instituições da cidade. A necessidade de arrancar com o processo de consciencialização para a inclusão social cada vez mais cedo está na génese de GABO, o primeiro espectáculo da companhia para o público infanto-juvenil e que estará em cena de 9 a 12 de Dezembro.
“Quanto mais cedo eles perceberem que podem estar em cena, ou que o espectáculo deles pode ser bonito, menos tempo a gente precisa investir nessa consciencialização”, comenta Henrique Amoedo, que idealizou o espectáculo com o francês Patrick Murys, responsável pela encenação e direcção de actores. Inicialmente, sabiam apenas que queriam “criar algo de mágico e misterioso a partir do quotidiano” – o nome é, aliás, uma piscadela de olho ao mestre literário do realismo mágico, Gabriel García Márquez –, mas aos poucos foram dando forma a um universo paralelo com várias leituras e níveis de profundidade.
Em palco há três rapazes que fazem do estendal o seu recreio. De collants enfiados na cabeça e pendurados nas cordas, percorrem a estrutura de uma ponta à outra, executam movimentos próprios, primeiro individualmente, depois ao mesmo tempo, num crescendo que vai sendo acompanhado pela música. Progressivamente inquietos, vão construindo gestos conjuntos, ora manipulando, ora sendo manipulados pelos seus pares. Enquanto brincam e testam os seus limites, dão de caras com uma criatura fantástica: Gabo, a marioneta que dá nome ao espectáculo e que vai contracenar com os três bailarinos para abordar conceitos como “a diferença e a igualdade”, “o feio e o bonito”, a “realidade e a ilusão”, de acordo com o texto de apresentação.
“[O dispositivo cénico] é um suporte para falar do que pode ser ou não ser monstruoso e de evocar essa ideia simultânea de atracção e repulsão”, observa Patrick Murys. O processo de criação obrigou o encenador a repensar as ideias previamente formadas e a sua forma de estar e trabalhar com os intérpretes. “De repente, não temos os mesmos códigos e é necessário interrogar os reflexos adquiridos antes.” O grande desafio dos últimos meses foi, exactamente, “encontrar o verdadeiro terreno de diálogo entre ambos os universos” e reconsiderar noções como espaço ou tempo.
GABO não é uma narrativa clássica ou linear, mas uma sucessão de “quadros [imagens] ou sensações que se vão construindo” e que adquire várias simbologias ao longo de 45 minutos de espectáculo. “Esse fio suspenso [em que os rapazes são deixados] pode representar a prisão, o caminho a seguir, os espaços de liberdade”, problematiza o encenador sobre o imaginário que é habitado, ainda, por outras três marionetas além da protagonista. No final de cada sessão, haverá uma conversa com o público, ao que se seguirá a exibição do documentário Gabo, posso entrar aí? de Carla Augusto, que nos conduz pelos bastidores de criação do espectáculo.
O elenco, que normalmente circula entre a Madeira e Viseu, desta vez inclui apenas viseenses, reflectindo um esforço contínuo em “privilegiar a comunidade e envolver o tecido local”, segundo Henrique Amoedo. Tão importante como a proximidade é a acessibilidade, que começou por ser promovida pela relação com o Dançando com a Diferença e foi contaminando toda a realidade do teatro, das cadeiras para espectadores de mobilidade reduzida aos materiais gráficos, passando pelos programas com audiodescrição e interpretação em Língua Gestual Portuguesa (LGP).
Patrícia Portela, artista transdisciplinar que assumiu a direcção do Teatro Viriato em Março, reconhece que “o teatro é um espaço de encontro com aquilo que não conhecemos e não sabemos e que serve para desafiarmos os nossos preconceitos e para nos reconhecermos”. Depois de vários anos a marcar presença na programação do teatro, uma das suas raras itinerâncias regulares dentro do país, assume “a vontade de trazer mais mundo para um mundo novo”.
A seu ver, a digitalização forçada pela pandemia “não é o futuro, é o presente”. Prova disso é o aumento de palcos “digitais, telefónicos e físicos” que se deu ao longo do último ano. O próximo passo é perceber “a dimensão do mundo em que vivemos e como podemos usar todas estas ferramentas sem deixar que o mundo volte a ficar pequeno”. “O futuro é digital, analógico, presente, ausente e, sobretudo, com espaço para todos”, remata.
Qua 10.30, Qui 10.30 e 15.00, Sex 15.00 (escolas) e 21.00, Sáb 10.30 (famílias). 2,50€-4€.