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Como nevoeiro cerrado que desce sobre o mar, deixando à vista apenas um par de rochas e uma porção ínfima do corpo de água que se estende ao oceano, a memória é uma paisagem altamente flexível e mutável. Sobre as nossas vivências e experiências edificam-se, muitas vezes, pensamentos e emoções que não faziam parte da mobília original ou que, pelo contrário, vão desvanecendo gradualmente até deixarem de existir.
É no barco ancorado entre ficção e realidade que encontramos Marta Nunes, ilustradora que se apropria do mundo em redor para construir narrativas em forma de imagem. Entre 5 de Setembro e 5 de Novembro, somos convidados a subir a bordo na exposição Há mais marés do que marinheiros, patente na galeria Padaria Águas Furtadas, no Porto. “É quase como fazer um nanoconto dentro de cada ilustração”, afirma a artista.
São cerca de 15 obras que contam as histórias imaginadas de “marés, pescadores e marinheiros”, apresentadas com o registo minimalista a que Marta nos vem habituando. A linha simples é aliada a uma paleta dominada por preto e salpicada por uma cor secundária como amarelo, vermelho ou, nesta última série, azul. “[Esta escolha] relaciona-se com a forma como estamos emocionalmente ligados a uma cor”, explica.
A depuração do traço permite não só dar vida a narrativas cativantes, mas também facilitar a leitura de elementos inspirados pela etnografia portuguesa. Esta é, aliás, parte estruturante do trabalho de Marta Nunes, que se diz apaixonada pela “iconografia e simbolismo de tudo o que é tradicional”. A inspiração na portugalidade é notória, por exemplo, em As Mulheres de Artur Pastor, série baseada nas imagens de trabalhadoras anónimas captadas pelo reputado fotógrafo do século XX para o Ministério da Agricultura.
Embora se evidencie no desenho, o amor às raízes começa na palavra. O nome da própria exposição espelha o gosto que tem por “expressões idiomáticas, trava-línguas ou lengalengas” e que lhe foi incutido pela avó e bisavó maternas. “Talvez por ter crescido com elas, o meu imaginário tem muitas pessoas idosas”, revela. Coincidência ou não, também o envelhecimento é uma estampa fiel do Portugal de hoje.
Há mais marés do que marinheiros é um universo surreal e poético que se divide em dois: de um lado, os pescadores de rosto encorrilhado e costas dobradas pela dureza do ofício com o mar pendurado na cabeça ou cravado na pele; do outro, as ondas e marés que refrescam e acalentam os dias pós-confinamento e que nos lembram que é sempre possível recomeçar. “Uma pessoa faz-se ao mar e pode correr bem ou não, mas amanhã é outro dia”, reflecte a ilustradora para quem tudo se resume a “histórias e pessoas”.
É esse conceito que trata, também, nas composições que faz através de desenho digital sobre fotografia de objectos ou paisagens, uma espécie de “realismo mágico influenciado pela literatura sul-americana”. A experimentação tem sido uma constante no quotidiano de Marta, arquitecta de formação que dedica todas as horas livres ao seu “hobby profissional”. “A ilustração acaba por ser o meu segundo trabalho, mas gostava que se tornasse primordial dentro dos próximos anos”. Nesse sentido, tem desenvolvido um volume cada vez maior de obras com recurso a materiais como caneta, grafite, marcador, tinta-da-china e, mais recentemente, tinta acrílica.
A exposição nas Águas Furtadas reflecte a viagem da artista por águas familiares e a vontade de explorar correntes desconhecidas. Quem quiser embarcar, vai encontrar por lá uma edição limitada de postais, prints A4, sacos de pano e originais entre 2,50€ e 150€. É bem provável que perca o norte neste mar de ilustração. A entrada é livre.
Padaria Águas Furtadas. Rua São Bento da Vitória, 44. Seg-Sáb 10.00-19.00. Grátis.
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