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As livrarias são um santuário seguro, um espaço de pensamento livre, de contemplação e de escape, para viajar para fora e para dentro. Muitas vezes os livros são as únicas janelas para um mundo mais receptivo e inclusivo. Há livrarias que são ainda mais especiais, que dão visibilidade a pessoas com identidades marginalizadas, para que se vejam a si mesmas e para que as suas histórias sejam reflectidas e dignas de arte.
A nova livraria do Porto é uma livraria especial. Chama-se Livraria aberta, assume-se como um espaço em construção e apresenta-se como uma livraria queer. Abriu as portas na Rua do Paraíso, simbolicamente a 28 de Junho, o Dia Internacional do Orgulho LGBTI+. É um projecto de Paulo Brás e Ricardo Braun, que aqui a apresentam.
Qual é a história da Livraria aberta? Quem são as pessoas por detrás deste espaço?
A Livraria aberta acaba de inaugurar a 28 de Junho, mas é fruto do trabalho que os dois temos desenvolvido no Porto. Um de nós é investigador de literatura e tem tentado perceber de que diferentes formas podemos dar a ler um texto, não só através da reflexão e da crítica, mas também de monólogos e performances. O outro, além de ter começado como tradutor, tem uma relação muito forte com a imagem, e o trabalho como encenador e dramaturgista tem sido essencial para a construção deste espaço.
Para quem não conhece, o que é uma livraria queer?
Talvez para nós a palavra “queer” tenha um significado mais abrangente do que aquele que normalmente se lhe associa. Em primeiro lugar, somos leitores com gostos que, como é óbvio, não se esgotam no catálogo que aqui reunimos, e isso fez com que também nós perguntássemos o que essa palavra poderia significar.
Interessam-nos os discursos de, e sobre, todas as pessoas que de alguma maneira se sentem socialmente excluídas, mas, para além dos recortes da orientação sexual, da identidade de género e da expressão de género (conceitos mais imediatos quando se fala de “queer”), também queremos trazer para o centro da discussão outras margens, como as raciais e de classe, para dar apenas dois exemplos. Cada um de nós pode sofrer vários tipos de exclusão ao mesmo tempo e não nos fazia sentido criar essas divisões dentro da livraria.
Porque é que era importante abrir uma livraria queer no Porto?
Se calhar importa pensar primeiro a importância de haver uma livraria queer em Portugal: um espaço que celebra vozes cuja história merece ser celebrada para que faça parte das nossas memórias e referências. Há, claro, autores esquecidos ou desconhecidos, mas na maior parte das vezes trata-se menos de dar a conhecer alguém novo do que oferecer uma leitura alternativa da sua obra.
Agora o Porto: é, antes de mais, a cidade onde estudámos e temos trabalhado há dez anos. Além disso, abri-la aqui acrescenta uma camada interessante porque a cidade é um lugar contraditório no que toca à comunidade LGBT+. Numa cidade que tem um festival de cinema queer, bares, um círculo particularmente vivo de criadores nas áreas das artes plásticas e performativas, assim como associações e grupos activistas, fazia-nos confusão que, tirando uma ou outra experiência efémera, o Porto nunca tivesse tido um espaço dedicado a esta literatura – ainda que importe fazer referência à Esquina Cor de Rosa, a primeira livraria LGBT portuguesa, criada em 1999 em Lisboa por Jó Bernardo.
Para nós, essa era uma falta considerável. Há quem procure um livro para se ver reflectido nele, assim como há quem procure um livro para descobrir alguém completamente diferente de si e desenvolver essa empatia: ambos os desejos de representatividade são válidos. No entanto, para um e outro é importante apoiarmo-nos na História. A História não pode ser esquecida para que possa continuar a escrever-se. Acreditamos profundamente que se não lermos autores queer não teremos autores queer, no sentido da influência literária, mas também da educação sentimental. Faltava um lugar deste tipo onde toda a gente se pudesse sentir confortável para discutir estas questões, ou muito simplesmente para nos visitar como querem e com quem querem.
Paralelamente, e isto também é importante, mantém-se um sentido de vizinhança na Rua do Paraíso. Muitos pais trazem os filhos, crianças e adolescentes, à Livraria aberta e ela começa a ser a livraria do bairro para a próxima geração. Essa dinâmica também é essencial para que o tema se descomplique e para que se construa uma comunidade mais alargada e com bases profundas, que não se organiza apenas quando é preciso votar determinada lei ou apoiar determinada causa.
Que autores, livros ou editoras destacam no catálogo da livraria?
O nosso trabalho tem passado por encontrar em cada editora aqueles livros que fazem sentido no contexto do nosso catálogo, ao mesmo tempo que nos damos muita liberdade para crescer, mudar de opinião e manter essa selecção sempre em aberto. Nesta fase inicial, interessa-nos reunir um conjunto de nomes que nos parecem incontornáveis, independentemente de esses livros serem novos, usados, em português ou outra língua – isso não nos parece tão importante quanto mantê-los disponíveis.
Podemos, no entanto, destacar algumas editoras que são pilares importantes do nosso catálogo. A Sistema Solar, que, não sendo uma editora queer, tem uma colecção de literatura com uma selecção criteriosa que demonstra uma enorme sensibilidade literária e estética, talvez centrada na pessoa do tradutor Aníbal Fernandes. As editoras Antígona e Orfeu Negro, que têm trazido para Portugal tantos livros de autores negros, de teoria feminista e muitos outros de que gostamos. E, acima de tudo, as pequenas editoras, algumas delas projectos de livrarias independentes, que têm levado aos ombros muitos dos riscos editoriais em Portugal, como a não (edições), cujo catálogo poderia estar praticamente todo na livraria, e a Snob, com uma integridade que só podemos esperar alcançar no nosso próprio percurso.
O que podemos esperar da Livraria aberta nos próximos tempos?
Em breve, vamos publicar o nosso site, para que possa existir outra forma de nos visitarem, caso não sejam do Porto. Já recebemos encomendas e fazemos entregas por correio, mas com a loja virtual tudo isso será mais fácil. A partir do Outono, queremos avançar com a programação na livraria para, como dizíamos antes, continuar a encontrar outras formas de dar algo a ler. Reunir livros nas estantes é o primeiro passo, mas é importante chegar a um maior número de pessoas para alargar a conversa.
Mais tarde, talvez no próximo ano, começaremos o nosso trabalho como editores. No seguimento do que falávamos sobre construir um catálogo diverso, a ideia é que, quando tudo o resto falhar (o que há novo, o que há usado, o que há em português ou noutra língua que seja mais ou menos acessível), editamos nós. E, num país em que se edita bastante, ainda há muito que falta nas nossas estantes.
Rua do Paraíso, 297-299 (Porto). Seg-Sáb 10.00-13.30 e 14.30-19.00. Facebook, Instagram, Twitter. Loja online (em breve) em livrariaaberta.pt
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