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Paula Cardoso lembra-se de fechar os olhos e desejar ter cabelo liso no lugar do cabelo crespo que lhe emoldurava o rosto. Em criança, folheava desenfreadamente as histórias que lia na tentativa de encontrar um espelho onde pudesse ver-se reflectida, nomeadamente em personagens com o seu tom de pele, a sua textura de cabelo ou as suas feições. Recorda-se nitidamente da altura em que se embrenhou na colecção Uma Aventura, de Ana Maria Magalhães e Isabel Alçada, e em que uma falha na impressão das ilustrações – na altura feitas a preto e branco – a fez pensar que um dos cinco protagonistas era negro. “Fui logo contar às minhas irmãs, mas a mais velha disse-me, do alto da sua consciência, que era só uma fotocópia má”, começa por contar a jornalista e co-fundadora da Afrolink, plataforma de partilha e divulgação de negócios e competências de profissionais africanos e afrodescendentes.
À medida que foi crescendo, continuou a busca exaustiva pela sua pertença, mas depressa percebeu que ela não existia em parte nenhuma. Nem nos livros, nem nos desenhos animados, nem na publicidade que dava na televisão. “Se todas as mensagens e imagens que consumimos não nos incluem, pelo contrário, começamos a rejeitar as nossas características”, problematiza. Nascida em 1979 na Beira, Moçambique, veio para Portugal com três anos e viveu sempre em contextos com forte presença negra, primeiro em Loures e depois em Vila Franca de Xira. Mas durante a infância, fase marcada por uma acentuada procura de aceitação por parte do outro, a ausência de vozes e corpos negros nos conteúdos a que acedia levou-a a desenvolver uma relação conflituosa com os seus traços.
Ouvir a palavra “catinga” recorrentemente e ver que o dicionário a definia como “mau cheiro proveniente da pele dos negros” não ajudou. “Quando não há referências quase nenhumas e as que há são negativas, a possibilidade de eu vir a ser uma super-heroína não existe no meu imaginário”, explica Paula Cardoso. A necessidade de encontrar narrativas onde nenhum papel está reservado, aliada à vontade de oferecer aos sobrinhos livros com que se possam identificar, levou-a a imaginar a Força Africana, uma equipa de super-heróis negros que são apresentados como “as crianças mais poderosas do planeta” e que põem mãos à obra “sempre que um problema no mundo parece não ter solução”.
São cinco e vêm dos Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa (PALOP), mas vivem numa terra ficcionada algures no continente africano. Além da resolução de mistérios que prometem aguçar a curiosidade da pequenada, as aventuras de Nzinga (Angola), Cacau (São Tomé e Príncipe), Crioulo (Cabo Verde), Bijagós (Guiné-Bissau) e Macua (Moçambique) têm uma componente pedagógica. “Não quero que seja uma aula de História, mas que transmita informação útil sobre África”, refere a autora. A aprendizagem dá-se logo na introdução, a partir do nome das personagens, cuja origem se deve a figuras históricas, matérias-primas, línguas, territórios ou povos originários de cada país.
As próprias características das personagens “falam para a realidade africana” – Nzinga, cujo nome é uma homenagem à emblemática rainha angolana, tem o poder de “brilhar como um diamante, matéria-prima central na economia angolana”, e “corre como uma palanca-negra”. “Dessa forma constrói-se a ligação para realidades que não estão nada presentes, mesmo nas escolas”, observa Paula Cardoso.
A fomentação da relação com as origens e a introdução da conversa sobre diversidade étnico-racial devem ser realizadas durante o pré-escolar, pois “já levamos alguns anos de sociabilização fora do contexto familiar e é a fase em que ainda somos moldáveis”, refere. “Nessas idades é essencial que haja brinquedos e livros com todas as diversidades possíveis, para que se quebre a ideia de que os heróis são apenas brancos.”
Integrar essa pluralidade na primeira infância é uma forma de subverter a narrativa de subdesenvolvimento, inferiorização, invisibilização e criminalização dos negros, perpetuada através da associação exclusiva de África à escravatura e ao colonialismo. A distorção da realidade africana continua muito presente na literatura infanto-juvenil, afirma Paula Cardoso. “Os poucos livros [com personagens negras] que existem são traduções e mostram a criança descalça num chão de terra batida e com uma palhota no horizonte.”
Já vai longa a batalha de Paula pelo aumento da representatividade negra nos livros para crianças, mas o próprio mercado editorial tem sido um obstáculo. Quando se apercebiam que se tratava de uma história contemporânea com crianças que poderiam viver em Portugal e não no típico ambiente de pobreza e ruralidade, as editoras achavam que “os leitores não tinham interesse nestas histórias”. “Isto é novamente excluir muitos portugueses que também têm o direito de se reverem no que lêem.”
Apesar das dificuldades, o primeiro volume da série, O Sol desapareceu. Será que foi roubado?, foi produzido de forma independente e teve uma tiragem de 500 exemplares, com ilustrações de Irene Filipe Marques. Este é um livro para todas as crianças, que promove a auto-estima, o sentido de pertença, a empatia, a tolerância e, sobretudo, o direito ao sonho. Porque, na verdade, o lugar delas é onde entenderem.
O Sol desapareceu. Será que foi roubado?, 44 pp. 12€. Encomendas no site e envio via CTT.
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