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Onde está o património do circo em Portugal? Este projecto quer descobri-lo e fazer dele um museu

Tem sido "uma corrida contra o tempo" para evitar que o património circense desapareça. O Centro de Investigação sobre as Artes do Circo nasceu há dois anos para recuperar a sua história.

Ana Catarina Peixoto
Escrito por
Ana Catarina Peixoto
Jornalista, Porto
Fotografias do Circo Chen
@ Rui Leitão (Arquivo RISCO) | Fotografias do Circo Chen
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Falar de circo é falar de uma tradição com vários anos, que já alegrou e surpreendeu muitos com demonstrações de magia, de suspense e de risco. Mas, onde está guardada e preservada essa tradição? O que sabemos sobre a arte circense em Portugal? "A investigação do circo em Portugal reduz-se a praticamente nada”. A resposta pode ser inesperada, mas foi este o cenário que o antropólogo Rui Leitão encontrou quando, em 2023, foi desafiado pelo Instituto Nacional de Artes do Circo (INAC), com sede em Famalicão, a dirigir um Centro de Investigação sobre as Artes do Circo (Risco). O objectivo é estudar e reunir tudo o que existe sobre esta arte em Portugal e evitar que os conteúdos se percam com o tempo, tornando-os acessíveis a todos os que os queiram conhecer. No final, o sonho é fazer nascer um museu nacional do circo.

"O INAC sentiu que, muitas vezes, precisava de recursos sobre o circo em Portugal, do ponto de vista estético, histórico, antropológico e sociológico, e não encontrou muitos documentos”, explica Rui Leitão à Time Out, acrescentando que o primeiro ano de trabalho serviu para perceber que investigação é que já existia nesta área. Apesar do reconhecimento a nível internacional, esta arte performativa não tem sido alvo de muitos estudos nas ciências sociais e outras disciplinas. “Temos umas 13 ou 14 publicações académicas e cerca de oito livros editados ligados ao circo, sendo que a última publicação em livro em Portugal terá sido há provavelmente 20 anos”, enumera. E muita coisa mudou em 20 anos. 

Ao longo dos últimos dois anos, e “ainda no meio de uma grande confusão de notas”, Rui Leitão tem feito um importante trabalho de terreno, ao contactar com várias famílias de circo em Portugal. Recolheu as suas histórias de vida e os materiais históricos que mantiveram guardados — desde instrumentos de música a figurinos, objectos de manipulação, trapézios, correspondência, documentos de escritório e fotografias. Entre o acervo que já conta com centenas de documentos doados, o investigador destaca, por exemplo, os negativos de fotografias dos espectáculos de Natal da família Chen no Campo Pequeno, durante os anos 80, bem como partituras originais das orquestras que actuavam ao vivo nos espectáculos. “É um tipo de acervo que estava quase condenado a ir para o lixo e que conseguimos adquirir a tempo de o salvaguardar”, refere.

Mas o desafio não está só em descobrir a história e o património. Muito do espólio mantido pelas várias famílias de forma particular, alerta, não está guardado com as condições adequadas para que mantenha a sua qualidade ao longo dos anos, o que constitui um risco de desaparecimento. "Há ainda outro aspecto: o património do circo, por ser itinerante, muitas vezes é deitado ao lixo para dar espaço a novos elementos para novos espectáculos. Por vezes, as próprias famílias têm pouca documentação", alerta o antropólogo, desafiando todos os que tiverem algum material histórico relacionado com o circo a contactarem este centro de investigação. 

Uma fotografia antiga do Circo Mariano que integra o arquivo do RISCO
Arquivo RISCOUma fotografia antiga do Circo Mariano que integra o arquivo do RISCO

Circo: uma história de mudança e de risco

Há quem possa pensar o contrário, mas o circo foi mudando e evoluindo com a História. "A história do circo, mesmo do ponto de vista mundial, está em permanente alteração e a evolução é uma constante até hoje – conforme a época, o país e os acontecimentos mundiais. Há toda uma transformação da sociedade a partir dos anos 70 a que o circo não ficou indiferente. Por muito que às vezes se diga que o circo parou no tempo, isso não é real", sublinha Rui Leitão. "Também as famílias de circo itinerante foram adaptando os seus tipos de espectáculos para conseguirem acompanhar o que a sociedade exigia nas diferentes épocas”, continua.

Prova da importância da arte circense no país e da inclusão numa cultura de massas é o facto de que, até aos anos 90, “o circo foi praticamente a única arte performativa que muitas aldeias conseguiram ver no interior de Portugal”, relembra o investigador. E foi também, ao longo da sua história, uma arte de risco nos vários sentidos. “A história do circo é incrível. A quantidade de grandes empresários que foram à falência, de grandes circos que incendiaram, outros que desapareceram… Há sempre um risco iminente dentro do circo. Não é só com o artista que está na pista, mas é realmente uma vida itinerante, uma vida inconstante. O circo é uma área onde o risco vai um pouco além daquilo que já são as artes performativas no geral”, refere. Uma arte cujo património pode desaparecer se não for cuidado e preservado.

Rui Leitão é coordenador científico no RISCO (Centro de Investigação sobre as Artes do Circo)
Duarte LaúndosRui Leitão é coordenador científico no RISCO (Centro de Investigação das Artes do Circo)

Um futuro museu nacional dedicado ao circo

Um dos grandes desafios do Centro de Investigação sobre as Artes do Circo é evitar que o património esmoreça e, para isso, é necessário criar condições para salvaguardar toda esta história. O grupo procura, assim, parceiros, desde autarquias a outras instituições, que estejam disponíveis para ceder um espaço para acolher este património, mas também para fornecer ajuda financeira e técnica para que se comece a trabalhar numa solução definitiva. O grande objectivo é que nasça um futuro museu nacional do circo, num projecto que ainda poderá demorar cerca de dez anos.

Estamos numa corrida contra o tempo para a possível salvaguarda de todos estes materiais que podem desaparecer um dia destes”, alerta Rui Leitão, acrescentando que desde a pandemia da Covid-19 “vários circos têm vindo a fechar”. Se em 2020 existiam 30 circos registados na Associação Portuguesa de Empresários e Artistas de Circo, actualmente o investigador conseguiu identificar 22 circos activos. 

O Risco tem também desenvolvido mesas redondas e palestras dentro de vários eventos para alertar sobre a responsabilidade deste trabalho de preservação, como é o caso do Cupula Circus Village Festival, que se realiza todos os anos em Arcozelo. Está também a ser preparada para este ano uma exposição itinerante com algum do acervo que já está nas mãos deste projecto que, um dia, espera poder dizer: "Senhoras e senhores, meninos e meninas, bem-vindos ao circo". 

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