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Blake é, seguramente, o livreiro mais fofo do país. Os seus caracóis negros junto às orelhas pedem um cafuné mal passamos a porta. Só depois deste gesto mais forte do que a nossa própria vontade é que nos conseguimos focar nas antologias poéticas de Carlos Drummond de Andrade e de Vinicius de Moraes, nas cartas de amor de Fernando Pessoa ou de Pablo Neruda, n’Os Poemas Possíveis de Saramago, na Divina Comédia de Dante ou nos escritos de Rimbaud que enchem as prateleiras de um lugar que ainda cheira a pintado de fresco.
Blake, o cocker spaniel de sete anos, baptizado em homenagem a William Blake, poeta e pintor inglês que viveu entre o século XVIII e XIX, segue-nos, como se quisesse aconselhar-nos por entre os cerca de cinco mil livros espalhados pelo novo espaço da Poetria. “Por incrível que pareça, todos os livros que estão aqui também estavam lá”, diz Francisco Reis que, juntamente com Nuno Pereira, gere uma das mais emblemáticas livrarias do Porto. A Poetria, que até Dezembro do ano passado funcionou numa loja nas Galerias Lumière virada para a rua, mora, desde meados de Janeiro, na Rua de Sá de Noronha, a cerca de 100 metros. Com quase 19 anos de vida (em Maio, por altura do aniversário, farão a inauguração oficial), tornou-se icónica por ser a única no país especializada em poesia e teatro e por oferecer tanto em apenas seis metros quadrados. “Agora posso trazer o Blake para aqui, que foi uma coisa que sempre quis fazer e nunca consegui no outro espaço, por ser muito pequeno”, conta satisfeito Francisco.
Respira-se a alegria que acompanha os novos inícios, mas nem sempre foi assim. Os tempos foram conturbados desde que se anunciou o fim das Galerias no final de 2019, para uma futura exploração hoteleira. “Estes anos foram uma porcaria. Durante dois anos e meio sofremos pressão por parte do nosso senhorio para abandonar o espaço. E, depois, o desleixo em relação às Galerias. Já não havia limpeza e não abriam a passagem entre a [Rua de José] Falcão e as Oliveiras, era eu que tratava disso. Foram tempos muito complicados, agravados pela covid, e fomos assistindo a uma degradação, a uma morte lenta”, relembra, enquanto afaga a cabeça de Blake, agora deitado sobre um dos sofás que existem no piso superior, destinados a quem por lá se quiser sentar a ler um livro.
“Nós fizemos um bocadinho de finca-pé, porque era a nossa loja, a nossa Poetria. Foram quase 20 anos lá. Houve coisas que nem sequer pedimos, como, por exemplo, o estatuto de loja histórica, que poderia inviabilizar completamente esta questão. Com esse estatuto era muito complicado tirarem-nos de lá. Mas com uma loja cedida pela Câmara, não fazia sentido estar a bloquear aquilo.” Hoje pagam uma renda simbólica de 50€, uma grande ajuda, já que estão a sentir alguma quebra na facturação. “A Câmara deu-nos esta alegria de nos indicar um espaço. Desde o primeiro momento, quando nos reunimos em Dezembro de 2019, que o Dr. Rui [Moreira] nos acalmou e disse que sabia o interesse que esta loja tinha para a cidade e para as pessoas. Que é muito mais do que uma livraria, é uma relação de afecto com esta zona. E esta zona cresceu muito nos últimos anos. Apareceram muitos restaurantes e hotéis, mas faz falta outro tipo de negócios.”
O espaço, agora, até pode ser maior – tem mais de cem metros quadrados –, mas prometem manter-se fiéis à sua identidade, com o foco na poesia e no teatro, mas “aumentando um bocadinho a oferta de cinema, de dança e de arte”. É ir espreitar. E não esquecer de cumprimentar o Blake.
Três Perguntas a Francisco Reis
Como é que se conquista um leitor para a poesia?
Nós estamos a fazê-lo com uma editora chamada Fresca. Surgiu há dois anos e editou, desde então, 14 livros (12€/15€). Todos de jovens poetas, todos eles nascidos depois de 1980 e todos com ligações à cidade do Porto. Pretendemos com esta colecção incentivar os mais jovens e as pessoas que não lêem muita poesia a ir buscá-los, através de uma linguagem que lhes pode ser mais comum. Muitas vezes as pessoas têm uma ideia da poesia relacionada com aquilo que estudaram no liceu, que é óptima, mas fechada àquele tempo, àquela época, e nós queremos demonstrar que a poesia está muito diferente. O nosso enfoque é possibilitar uma leitura por gosto, por prazer e não uma leitura obrigatória.
Numa altura em que ninguém tem tempo, a poesia pode ser uma boa aliada da leitura?
A poesia é como um shot. O teu dia pode estar a correr muito mal, mas se pegares num livro de poesia e em dois minutos leres um poema, o teu espírito pode ser completamente elevado e mudar a tua perspectiva sobre as coisas. A poesia permite-te um escape rápido, temporário, mas efectivo. Tem um princípio, um meio e um fim. Às vezes, numa página. Por isso é que resulta tão bem em redes sociais: passas, lês e algo em ti muda, toca-te.
E o teatro vai ter novidades?
Em Março vai sair uma co-edição nossa de sete peças de teatro de autores quase todos aqui do Porto, como o Nuno Cardoso e o Jorge Palinhos. É a primeira aventura da livraria em teatro. E estamos muito entusiasmados e ansiosos pelo que aí vem [risos].
Rua de Sá de Noronha, 115 (Porto). 22 202 3071. Seg-Sáb 11.00-19.00