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Sílvio é herdeiro do cravo e guardião da manhã (e nós também)

Francisco Duarte Mangas tem uma nova história para contar. O desenho é de Ana Biscaia, que deixou as palavras brilhar para lembrar que, em tempos difíceis, o diálogo é a arma mais poderosa.

Raquel Dias da Silva
Jornalista, Time Out Lisboa
Sílvio, herdeiro do cravo
Ilustração de Ana BiscaiaSílvio, herdeiro do cravo, de Francisco Duarte Mangas e Ana Biscaia
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Foi numa aldeia de Rossas, Vieira do Minho, que Francisco Duarte Mangas viveu a Revolução dos Cravos. Tinha 14 anos e viu tudo acontecer pela televisão. Estava nas aulas – naquela altura, havia a Telescola, com emissão das duas às sete da tarde – e lembra-se do crucifixo de um lado e dos retratos de Américo Thomaz e Marcello Caetano do outro. “Estávamos a ter francês quando interromperam a emissão, veio um dos militares do Conselho da Revolução comunicar o que estava a acontecer e a professora nos mandou ir para casa”, recorda Francisco, que neste mês de Abril, a propósito dos 50 anos do 25 de Abril, nos convida a reflectir sobre o que significa viver em liberdade – e, mais importante, como podemos assegurar que Portugal não volta a ser o “País da Gente Triste”. No seu novo livro, editado pelo Caminho das Palavras e desenhado por Ana Biscaia a carvão e aguarela, o protagonista é um menino curioso que, ao ver a mãe de cravo na mão, quer saber porque anda ela com uma flor tão linda. Sílvio, herdeiro do cravo chega às livrarias este sábado, 20 de Abril.

“Naquela altura [antes do 25 de Abril], já tínhamos ouvido falar num golpe de Estado, mas não sabíamos o que era, eu não sabia, e lá fomos para as aulas, até que aconteceu”, conta-nos Francisco, que eventualmente haveria de ir estudar para o Porto, para se formar em História. Actualmente, é escritor a tempo inteiro e presidente da Associação dos Jornalistas e Homens de Letras do Porto. “Lembro-me que fizemos a nossa primeira manifestação no início de Maio [de 1974]. Foi um tempo muito bonito”, partilha. “Da transição para Braga [ainda antes de ir para o Porto, nos anos 80], lembro-me de uma biblioteca espantosa. A [escola secundária] Sá de Miranda tinha uma biblioteca que eu nunca tinha visto, porque nunca tinha visto uma biblioteca tão grande. Nem grandes, nem pequenas. A da aldeia não tinha nada a ver. De repente, era um mundo novo, e estas liberdades, que agora temos, nunca estão garantidas. É preciso defender os valores de Abril. O Sílvio diz que os guarda no coração, e vamos ver se há outros Sílvios por aí com a mesma ideia.”

Sílvio, herdeiro do cravo
Ilustração de Ana BiscaiaSílvio, herdeiro do cravo

Sílvio, herdeiro do cravo não é o seu primeiro livro para a infância. Na verdade, o menino-perguntador já o acompanha há mais de uma década. Nasceu em 2010, como Sílvio, domador de caracóis, para nos falar sobre sonhos, e voltou a surgir em 2016, como Sílvio, guardador de ventos, ainda com muitas dúvidas sobre o seu futuro. Esses dois volumes, publicados pela Caminho, contavam com ilustrações de Madalena Moniz. Entretanto, Sílvio não parou de crescer e, claro, Francisco não hesitou em resgatá-lo quando a Caminho das Palavras o desafiou a escrever uma história sobre o 25 de Abril para crianças entre os seis e os dez anos. “Acho que comecei a escrever livros para a infância por causa dos meus filhos, mas também são histórias para os pais. Eles percebem de uma maneira e os miúdos de outra”, diz Francisco, que tem mais de três dezenas de livros publicados, entre obras de ficção, poesia e literatura infantil. “Tentei não infantilizar as crianças e, tal como nas outras histórias [em que o Sílvio é protagonista], há um jogo com a língua.”

Agora o cravo é teu

Tudo começa com uma pergunta. “Porque andas com uma flor tão linda?”, pergunta Sílvio à mãe. E, de repente, estamos a ouvir pelo buraco da fechadura uma conversa que, afinal, nos importa a todos. Com uma linguagem poética, plena de metáforas, a narrativa constrói-se em pingue-pongue, do filho para a mãe e da mãe para o filho. E, por entre o texto desenhado, que nos surge ora dentro de vinhetas, ora livre, encontramos vislumbres de um céu sob ameaça de chuva, de um sol aprisionado, de um menino triste, de uma noite escura, de segredos estrelados, de um dia maravilhoso, da felicidade um povo, de um país a nascer “do ventre de uma chaimite”, de uma manhã excepcional que irrompe num crescendo. “Fui eu que sugeri a Ana Biscaia”, esclarece Francisco, referindo-se à ilustradora, que transformou o seu texto em desenho, pontuando-o com uma ilustração ali e outra acolá. “Não nos conhecíamos pessoalmente, mas conhecia o trabalho da Ana. Dei-lhe toda a liberdade e estou muito satisfeito.”

Sílvio, herdeiro do cravo
DRSílvio, herdeiro do cravo, de Francisco Duarte Mangas e Ana Biscaia

Ana Biscaia não viveu a ditadura: não sabe o que é ter livros proibidos, ser presa por se reunir com mais de três pessoas ou precisar da autorização de um homem para sair do país. Nasceu em 1978, quatro anos depois do 25 de Abril, mas cresceu a ouvir histórias do pai “sobre o cinzentismo e a tristeza profunda que se sentia” durante o Estado Novo. E não tem dúvidas: é, tal como Sílvio, uma herdeira do cravo e uma guardiã da manhã. “Como o Francisco sugere no livro, as estrelas que as pessoas carregam dentro podem, de facto, esmorecer, se não partilharmos as nossas ideias, as nossas inquietações, e é dessa luz que precisamos para a vida colectiva de todos”, afirma a designer e ilustradora, antes de nos falar sobre como procurou que a sua proposta gráfica invadisse o texto “o menos possível”. “Eu também sou leitora e o que o Francisco escreveu”, continua, “podia ser uma coisa que se ouve, não é? A palavra, para mim, é por si só o bastante. O texto é altamente poético. Quando a mãe diz ao miúdo 'guarda a manhã', ficamos a pensar no que é que isso quer dizer, o que é guardar a manhã? É o sol a nascer, não é?”

Sílvio, herdeiro do cravo
Ilustração de Ana BiscaiaSílvio, herdeiro do cravo, de Francisco Duarte Mangas e Ana Biscaia

O recurso à linguagem da banda desenhada permitiu a Ana deixar que a conversa se desenrole, desafiando os leitores a imaginar que estão a ouvir uma conversa a acontecer num quarto ou noutra divisão a que não têm acesso. Ao mesmo tempo evocam-se imagens a partir daquilo que se ouve. O mais importante, assegura a ilustradora, é o que está a ser dito e a relação de ternura e cumplicidade entre essas duas personagens. As palavras são manifesto – e o traço imperfeito, esborratado até, também. Porque a vida – tal como a liberdade – está sempre em construção. E, ainda hoje, que vivemos em democracia, há muito por fazer e uma ameaça cada vez maior a direitos que julgávamos inscritos na Constituição. Francisco não podia concordar mais: “É a partir do esquecimento e da ignorância que começa o crescimento destes populismos todos que agora vemos. É importante preservar a nossa memória colectiva. Senão, qualquer dia, temos outra vez o coração cheio de noite.”

O lançamento de Sílvio, herdeiro do cravo está marcado para sábado, 20 de Abril, às 15.30, na Biblioteca Municipal Almeida Garrett, no Porto. Segue-se uma oficina, até às 17.00, cuja participação é gratuita, mas requer inscrição prévia através de e-mail (bmp@cm-porto.pt).

Sílvio, herdeiro do cravo, de Francisco Duarte Mangas e Ana Biscaia. Caminho das Palavras. 52 pp. 15€ (9,99€ o ebook)

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