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Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades. Face à pandemia e respectivas restrições, o Grupo Experimental de Teatro da Universidade de Aveiro (GrETUA) transformou o seu habitual Curso de Formação Teatral num Curso de Teatro Radiofónico. Desta formação resultou o projecto Ruínas, uma série de sete audiodramas com concepção e encenação de Luís Araújo, director artístico da companhia Ao Cabo Teatro, em colaboração com Bruno dos Reis, director artístico do GrETUA. Os textos são assinados por três formandos do curso –David Calão, João Coutinho e Maria do Mar – e quatro criadores da dramaturgia portuguesa actual – Bruno dos Reis, Guilherme Gomes, Luís Araújo e Teresa Coutinho. A interpretação está a cargo de 11 participantes do curso, acompanhados por João Tarrafa, que também empresta a sua voz a uma das peças.
No ar até 12 de Abril, com um novo episódio lançado online às segundas-feiras, este projecto nasce de “um desejo antigo” de Luís Araújo. “A sonoplastia é uma das áreas que mais me interessam e cheguei a assinar algumas nos meus primeiros projectos”, conta o actor e encenador do Porto. O prólogo deste Ruínas foi esboçado no primeiro confinamento generalizado, quando Luís convidou alguns criadores para lhe enviarem uma descrição do que viam das suas janelas. “O Bruno dos Reis enviou-me 30 páginas. Ao ler, pensei imediatamente que aquilo tinha força suficiente para ser transformado em outra coisa e, como tinha tempo e um pequeno estúdio em casa, avancei para a gravação.” Dali saiu um audiodrama chamado Take Away, “a semente” do Ruínas.
Mas a relação de Luís Araújo com o teatro radiofónico já vem de trás. “O meu pai é cego e a minha educação sempre foi mais auditiva do que visual”, diz. No fundo, foi educado “para a escuta”. “Em minha casa, o rádio sempre teve mais preponderância do que a televisão. O meu pai tinha o hábito de gravar as peças de teatro radiofónico que passavam na Antena 1 para ouvirmos juntos. Era um tempo de comunhão de olhos fechados que me marcou muito.” Num mundo em que os ecrãs são cada vez mais omnipresentes e influentes, este formato pode parecer extemporâneo. Pode? “Não acredito em formatos extemporâneos, acredito em conteúdos extemporâneos”, contrapõe Luís Araújo. “Ou talvez a força deste veículo nasça dessa aparente extemporaneidade. Numa altura em que tudo é social e visual, julgo que uma experiência íntima e exclusivamente auditiva pode ter uma força transformadora”, aprofunda o criador, dando como exemplo projectos de jornalismo em áudio, entre eles o podcast Serial e alguns dos trabalhos do Fumaça.
Em Ruínas, cada audiodrama propõe uma experiência de escuta distinta, consoante a forma como foi pensada e concebida. Quanto ao processo de escrita, Luís aponta que este formato “abre a porta a equívocos interessantes de explorar” e que “cria armadilhas nas quais podemos cair voluntariamente para perceber como é que saímos delas, ou se queremos sair delas”. Já para Bruno dos Reis, o modus operandi implica, antes de tudo, “confessar que não sabemos fazer”. “A nossa relação com o som, enquanto sociedade, é muito particular e bastante diferente do que era há 70 anos”, considera. “O som raras vezes tem o seu espaço próprio: os álbuns e os podcasts que ouvimos acompanham as tarefas que fazemos, a rádio acompanha as nossas viagens ou a nossa rotina de exercícios. O mais aproximado que temos, enquanto ‘geração’, ao processo absoluto da escuta será ainda, e arriscando muito, as narrações que nos eram oferecidas para que fôssemos capazes de dormir em criança”, observa o director artístico do GrETUA, aproveitando para lançar a pergunta: “É o texto que deve ser adaptado ou é o público que se deve tentar adaptar?”
Apesar de existirem mais dúvidas do que certezas no que toca à criação para este formato, Bruno dos Reis diz ter sido “muito mais desafiante” do que escrever um texto para as plataformas convencionais. “A ausência da componente visual permite que se criem universos complexos que seriam absolutamente proibitivos para produções de palco”, assinala, por sua vez, Luís Araújo. O audiodrama tem algumas vantagens práticas relativamente às peças para palco”, entre elas o baixo custo de produção, mas o encenador prefere focar-se nas suas potencialidades específicas.
“O áudio é cego. E é um veículo intensamente visual precisamente por causa da sua cegueira. Não faltam recursos visuais, mas é o público que os fornece. A acção desenrola-se não num palco à frente do espectador, mas dentro de quem ouve.” Além disso, por se tratar de uma matéria incorpórea, o áudio não tem “fronteiras de tempo ou espaço”. Tudo isto altera não só a percepção, a capacidade de imaginação e a fruição do objecto artístico por parte do público, mas também o próprio labor dos autores. “O nosso trabalho é de evocação e sugestão, e o ouvinte torna-se parte do grupo de fazedores. Assume as funções de cenógrafo, desenhador de luz, figurinista”, afirma Luís Araújo. “Nesse sentido, poderá ser uma experiência mais intensa e pessoal.”
Cada audiodrama do Ruínas corresponde à divisão de uma casa. “Sempre pensei nisto como um todo. Interessava-me ter um tecto comum que me obrigasse a pensar e a desenhar a viagem que o ouvinte faz durante a experiência”, explica o responsável pelo projecto. Tendo em conta a situação presente, a casa surge como o “lugar lógico – e trágico”. “Nós deixámos de estar no nosso ambiente para nos transformarmos no nosso ambiente. Cada batalha que vencemos parece que traz uma ameaça de desastre e, mais do que nunca, julgo que ao destruirmos esse ecossistema nos destruímos a nós próprios.”
Os episódios que partem da casa-de-banho e da sala de estar já estão cá fora (criados por Bruno dos Reis e Luís Araújo, respectivamente); seguem-se a sala de jantar, a cozinha e três quartos. A ordem é surpresa: só se sabe aquando da estreia. Após o lançamento, ficam disponíveis gratuitamente na página de Facebook do GrETUA durante 24 horas, transitando depois para o Bandcamp do GrETUA, onde podem ser adquiridos a partir de 1€ por episódio ou 3€ pela série completa.
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