Uma nota acessória. Os colegas do guia Michelin que avaliam os restaurantes em Portugal apreciam duas coisas: música de elevador e menus cheios de estrangeirismos culinários anglo-franceses. Talvez por isso haja restaurantes que façam por cumprir os requisitos, mesmo que não precisem.
Há umas semanas, num jantar no The Yeatman, que ganhou a segunda estrela, foi um concerto inteiro para casais aborrecidos, pontoado por descrições orais capazes de dar cabo da memória até de um indivíduo que nunca fumou canabinóides. Agora, no Antiqvvm, quase o mesmo.
Horas a ouvir smooth radio nhó nhó e empregados a debitar informação culinária como se fosse uma lengalenga.
Boa comida não tem de ter banda sonora frouxa, não tem de ter banda sonora; boa comida não tem de ter souflé e crumble ou foguetório molecular inventado do lado de lá do Guadiana; boa comida não tem de ser explicada com detalhe clínico.
Posto isto, valem estes dois restaurantes as estrelas Michelin que ganharam? Valem, pois. Com ou sem sintetizadores lamechas, com mais ou menos cagança gourmet, ambos cumprem os critérios do guia dos pneus e têm pratos incríveis. Diria mesmo que os camaradas franco-hispânicos acordaram tarde de um longo sonho com Bocuse & Adrià.
Olhando agora para as duas experiências, talvez a comida mais regionalista deste Antiqvvm leve vantagem sobre a do The Yeatman. Embora inclua gourmesices dispensáveis de cozinha de fusão, hoje banalizadas, como o yuzu, o panko ou o daikon; embore use todo o arsenal técnico da cozinha modernista internacional, o chef Vítor Matos (ex-Casa da Calçada) soube conservar a rudeza dos sabores serranos e marítimos portugueses. Coisa que, num sítio sobre o Douro, numa cidade como o Porto, em Portugal, dá pontos.
Bons exemplos. O prato das conservas, que abriu um almoço recente, é um portento de culinária tuga bonita. Acho que nunca comi mexilhões como estes, carnudos, com a acidez certa, acompanhados de creme de pimento e de fígado de bacalhau (deliciosos), troços de cavala e um lombinho de sardinha assada e fumada em pedras de sal, obra de ourives, saborosíssima.
Outra criação de ouro, com identidade, são os cuscos: massa de trigo Barbela resgatada do receituário de Trás-os-Montes, aqui com favinhas e bochecha de porco, o molho apurado com sabores e aromas de vinho e enchidos, uma bela amostra de alta cozinha portuguesa.
Os dois pratos fazem parte da degustação Tradições Renovadas (80€), com oito momentos, sendo o primeiro composto por vários micro-entreténs de boca, todos excelentes (do merengue de beterraba com foie gras à sanduiche de tártaro de vitela com mostarda).
Entram ainda no menu uma massa, um peixe e uma carne, queijos e sobremesa, tudo em doses pequenas, naturalmente. No final, um adulto de compleição média não sai com fome, mas aquele amigo com o estômago dilatado pode protestar.
Há um menu maior (110€, com um nome igualmente infeliz: Ensaios Sensoriais), de dez pratos. E ao almoço pode optar pelo menu executivo, a 25€ (se não for o tal amigo esfaimado, claro; no dia em que lá fui, optou-se pela entrada de salmão fumado e pelo peixe manteiga como prato principal).
Tudo muito bem feito e cuidado, serviço atento, ritmo excelente, carta de vinhos bem seleccionada, louça muito bonita e apropriada.
O que faltou, então, para levar nota máxima, as nossas cinco estrelas?
Na verdade, não faltou nada. Sobrou.
O quê?
Sal.
Começou com os raviólis de queijo da serra e cogumelos trompetas da morte, sendo que a empregada tentou justificar a falha com o injustificável: “É que leva manteiga e a manteiga também tem sal”.
A seguir, o peixe manteiga, que não tem manteiga, sofreu do mesmo. E a bochecha de porco dos cuscos, idem. Muito sal.
Voltou a justificação injustificável: “Nós tentamos condimentar com o nível de sal médio”.
Tentam mas não conseguem. Se há quem saiba o que é o nível médio de sal servido nos restaurantes portugueses é um crítico gastronómico profissional. E o crítico garante: não foi o caso. Portanto, das duas uma: ou o chef é um hipertenso insensível ou ninguém provou a comida antes de a empratar.
O que, 100 euros na carteira a menos depois, faz apagar uma estrela do céu.
*As críticas da Time Out dizem respeito a uma ou mais visitas feitas pelos críticos da revista, de forma anónima, à data de publicação em papel. Não nos responsabilizamos nem actualizamos informações relativas a alterações de chef, carta ou espaço. Foi assim que aconteceu.