Uma má companhia pode deitar tudo a perder. E a História faz questão de nos atirar isso à cara. Atentemos no que aconteceu a Adão e Eva, que acabaram expulsos do Paraíso; à conta de Dalila, Sansão perdeu a força e ficou sem as tranças; e a vida pouco recomendável de Clyde atirou Bonnie para um fim trágico. Se tivéssemos que contar a história deste restaurante apenas do ponto de vista dos protagonistas, dispensando os actores secundários, este teria chegado sem dificuldade às cinco estrelas. Ainda assim, nada foi tão dramático como os exemplos supracitados. Ninguém nos convidou a sair, mantivemos todo o cabelo na cabeça e dali fomos para casa e não desta para melhor.
Mas vamos ao que interessa. A dona Amélia tinha um restaurante na Ramada Alta, mas mudou-se para o Campo Alegre onde continua a fazer felizes os seus clientes de sempre. E para sempre. Estou seguro de que irá demorar até voltar a comer umas amêijoas à Bulhão Pato tão boas como as desse dia. Grandes e gordas, com as conchas abertas, provocadoras, e a carne levemente cozinhada, vinham num molho límpido e salgado na dose certa, a saber bem a limão, alho e coentros, onde mergulhámos todo o pão que nos serviram. O decoro impediu-nos, contudo, de o beber à colherada. No fim, quando a conversa já era possível – até ali a boca abria-se apenas e só para ingestão – percebemos que éramos uns sortudos. Seguiram-se umas gambas ao alho, que em contacto com o molho quente (ligeiramente diferente e quase tão bom), cozinharam um pouco demais enquanto esperavam. Mas há que ser justo, depois daquelas amêijoas a competição torna-se difícil.
Ainda antes das entradas vieram para a mesa uns rissóis de carne, envolvidos em massa tenra, bastante bons e com uma boa fritura, e uns bolinhos de bacalhau que deixaram Alfredo Lacerda, um outro crítico desta revista, pelo beicinho. Tudo acompanhado por um fresquíssimo Papa Figos branco do ano passado, apresentado por um jovem empregado eficiente e simpático.
Uma dose de filetes de polvo com arroz do mesmo e outra de rabo de boi estufado foram as escolhas para pratos principais. As pernas grossas e tenras do cefalópode (provavelmente massajado pelas divinas mãos da dona Amélia), com uma boa fritura e um travo a limão, davam gosto comer. Enchiam a boca de umami e o cérebro de boas sensações. Já o arroz seco com pedaços de polvo rijos, meio frio, que o acompanhava, parecia ter sobrado do meio-dia. O rabo de boi também estava bom. A carne, bem temperada e aromatizada, com vinho, alho e louro, e untuosa como se quer, desfazia-se facilmente com a ponta da colher e escorregava bem com um puré de batata que, ainda assim, passava despercebido no conjunto.
Por esta altura já não cabia nem mais um alfinete, mas só um louco é que sai deste restaurante sem comer as sobremesas desta mulher. Primeiro, um toucinho do céu espesso, húmido, bem doce e com uma consistência no ponto. Depois, uma fatia inacreditável d’ “O Melhor Pão-de-Ló do Universo”. A massa leve carregava estoicamente uma monumental quantidade de doce de ovos sem se desmanchar. Se há dupla perfeita é esta.
*As críticas da Time Out dizem respeito a uma ou mais visitas feitas pelos críticos da revista, de forma anónima, à data de publicação em papel. Não nos responsabilizamos nem actualizamos informações relativas a alterações de chef, carta ou espaço. Foi assim que aconteceu.