É tramado quando temos amigos um bocado metafísicos, com uma sensibilidade artística de tal forma apurada que se estende dos olhos ao palato e que conseguem ver num prato de atum um quadro de Kandinsky. Do outro lado da mesa fiz uma tentativa de imaginar um Rembrandt, olhando atentamente para a luz que incidia sobre os rabos de porco desfeitos numa moleza boa de carne, gordura e cartilagens, com muitos cominhos à mistura (5€). Mas lembraram-me mais uma pintura de Pollock, um tanto desajeitada, e desisti.
A piada deste prato estava na simplicidade. Não são muitos os restaurantes que apostam em partes menos nobres dos animais – talvez com medo que a clientela torça o nariz (coisa que está a mudar e ainda bem) –, mas os rabos de porco acompanhados por um creme de amêndoa, pickles de couve flor e crocantes de amêndoa (havia doçura, sal e crocância, só senti falta de um elemento mais fresco para contrabalançar), foi um começo com graça. Menos engraçados foram os cornetos de carne maturada (5€). Esta carne é uma das especialidades deste restaurante, inserido no ZERO, o alojamento que o grupo lisboeta Mainside abriu na Rua do Ateneu Comercial do Porto. Dentro deste espaço desafogado de estilo retro-industrial há ainda um cofre, que deu assistência ao Banco Mello e à União de Bancos, que ali funcionaram, forrado a carpetes que custaram os olhos da cara, segundo o funcionário que nos atendeu.
Voltando aos cornetos, uma ideia já gasta, a carne pecou pela falta de tempero, e a massa, apesar de simpática, concentrou a cebola e a mostarda no fundo do cone. E como não eram propriamente do tamanho de um niguiri, não deu para enfiar tudo na boca de uma só vez para que a experiência fosse total. Nem o Saturno de Goya conseguiu tal proeza. Cronus comeu o tempo aos bocados.
Para a mesa corrida, partilhada com turistas, casais e grupos de amigos, veio ainda o atum (o tal peixe que desperta neste meu amigo a veia criativa e o põe a ver formas geométricas) com yuzu, curgete e molho soja (10€). Uma combinação segura e pouco arrojada que se tornou esquecível assim que o tutano na brasa (6€) chegou. Gorduroso e bem condimentado – uma daquelas coisas que não se pode comer todos os dias, mas que servem de comemoração quando o médico de família nos diz, com uma certa incredulidade, que “o colesterol está surpreendentemente bom” – trazia mostarda a dar salero, folhas de agrião com a sua acidez para equilibrar e finas fatias de pão tostado para ajudar a comer. Tudo muito festivo.
Rematámos o jantar com uma costeleta Maronesa na brasa (ao quilo ficou-nos por 20,52€), escolhida da vitrina junto ao balcão da cozinha aberta. Grelhada só com sal e especiarias e com a gordura a escorrer por entre os veios da carne, foi um agradável final, acompanhado por um arroz de grelos e pinhões (4€), bem cozidinho e apurado, a fazer lembrar o das nossas avós, bem parecido com um Caravaggio.
*As críticas da Time Out dizem respeito a uma ou mais visitas feitas pelos críticos da revista, de forma anónima, à data de publicação em papel. Não nos responsabilizamos nem actualizamos informações relativas a alterações de chef, carta ou espaço. Foi assim que aconteceu.