A menina tinha razão. O raio do vinho era bom. Um Aventura branco de 2017, um regional alentejano resultado de uma mistura de castas que deixava um arrasto mineral e perfumado na boca e dava vontade de soltar estalidos com a língua e sonoros “ahhhhs” no fim. Depois, o barulho da crosta do pão caseiro, feito a partir de massa mãe, a ceder à pressão aplicada pelos indicadores e polegares. Com muito ar, uma leve acidez, pedia para ser barrado com o paté de abacate e poejo que o acompanhava. Lá fora chovia, as bátegas contra a vidraça. O riso dela. Tudo isto era música para os meus ouvidos.
Houve tempos em que o meu Id e o meu Ego entravam em conflito em restaurantes. Se o primeiro, inato, não suporta uma data de coisas – como favas e ervilhas murchas, mel, cenoura cozida... – o outro usa toda a sua diplomacia para o convencer a experimentar, com o objectivo de me tornar num homem mais erudito gastronomicamente, menos abrutalhado, menos esquisitinho. Mas, verdade seja dita, isto só acaba bem quando se confia no chef. E ao Vasco Coelho Santos eu deixava que ele me alimentasse a favas e cenouras cozidas. Por isso, à confiança, pedi a cabeça de xara (7€), um paté feito com as partes moles da cabeça do porco, como a língua, a pele, as cartilagens. Acalmo o pânico instalado no rosto da minha companhia e o prato é devorado por ambos em segundos: um paralelepípedo de carne fumada crocante, ligeiramente tostado por fora e muito húmido e cheio de sucos por dentro Por cima, pickles de cebola e funcho aromatizam o preparado. Não há mais português do que isto, penso. Se comia cabeça de xara em qualquer sítio? Claro que não. “Boa escolha”, diz-me ela. O meu Ego incha.
Seguiu-se a abóbora e queijo chèvre (4€) – duas coisas que aprecio bastante combinadas, já que a doçura de um contra balança com o sal do outro – com óleo de pinho (bonito, mas em maior quantidade tornaria o prato mais meloso e não tão adstringente) e sementes de abóbora caramelizadas, que precisavam de um pouco mais de crocância. Depois, a açorda de gambas do Algarve (7€), com os camarões a cozinhar num saboroso molho de tomate com coentros e um ovo estrelado; e a sandes aberta de borrego (7,50€), que trazia a carne tenra a pingar sobre fatias do tal pão de fermentação lenta (que deixou a mesa num pandemónio de migalhas que não foram recolhidas até ao final da refeição).
A língua de vaca estufada (6,20€) foi um dos pratos vencedores. Cubos de carne tenros e deliciosos a desfazerem-se na boca, cozinhados lentamente num caldo sedoso de azeite e especiarias. Os espinafres quase crus e muito verdes e os rabanetes fatiados finamente davam doçura e cortavam a (maravilhosa) untuosidade do prato. Um puré de aipo (2€) amanteigado, pedido para acompanhar, ligou muito bem pela doçura.
Já nas sobremesas, o desconstruído D. Rodrigo (5,50€), uma especialidade algarvia, com um gelado de canela, ovos moles e batata doce, não chegou aos pés da mítica rabanada do Vasco (6,50€), transportada do Euskalduna aqui para o Semea. Um pedaço de pão fofo mergulhado em leite, muito doce e caramelizado por fora e com uma consistência irrepreensível, vinha escoltado por um delicioso gelado de queijo da Serra. E eu, meus caros, não gosto de rabanadas. Nem das da minha mãe. Freud há-de explicar.
*As críticas da Time Out dizem respeito a uma ou mais visitas feitas pelos críticos da revista, de forma anónima, à data de publicação em papel. Não nos responsabilizamos nem actualizamos informações relativas a alterações de chef, carta ou espaço. Foi assim que aconteceu.