Somando a Póvoa de Varzim da infância à experiência internacional, Sérgio Cambas, responsável por O Paparico e pelas cervejarias Brasão concluiu que o caminho estava em abanar a cozinha e os conceitos portugueses datados, resgatando-os para um presente arrojado. Por sorte, fá-lo a partir do Porto.
Antes da idade adulta querias ser biólogo. O que liga a biologia à cozinha?
Tudo. Tudo é biologia. Estamos sempre a falar de matérias-primas, do entendimento da matéria. Eu vivo para a matéria, de alguma forma. Acabei o 12º ano na área de Científico-Natural. Claro que [nessa altura] já tinha uma paixão enorme pela hotelaria graças ao background dos meus pais. Quando temos alguma noção de como as reacções acontecem, como a matéria se desenvolve…
Quando a restauração passou a ser a tua profissão, não tiveste receio de perder a paixão?
Desenvolvi alguns interesses desde pequeno. Um pela biologia, pelos animais, pelas plantas, pela natureza, pelos ritmos das coisas. Outro pelas belas artes – um dos grandes mentores e influências que tive era um artista chamado Fernando [Gonçalves], dos melhores da Póvoa [de Varzim, de onde Sérgio Cambas é natural], e o ateliê dele era ao lado do meu restaurante. Pintava azulejos, fazia escultura, e sempre me deu muito barro para brincar, para estragar. Até determinada idade queria seguir belas artes, mais tarde foi biologia, mas houve algo sempre presente nestes processos entre a infância e a adolescência.
A hotelaria.
Cresci dentro de um restaurante. Tanto brincava com plasticina como fazia um rissol. Os meus pais viviam no restaurante. Não tive receio de mudar o paradigma para me tornar profissional de hotelaria porque não foi uma mudança, foi um acto contínuo. Ainda hoje não sei definir o que faço como pura e simplesmente uma profissão.
Não houve um momento em que tenhas tomado consciência de que esta era a tua estrada para o futuro?
A hotelaria abarca um range tão grande de coisas que se pode trabalhar desde um monoproduto, como os croquetes, até um hotel de luxo. O click que me fez apaixonar pela ideia de seguir na hotelaria foi trabalhar para o Ritz Carlton [em Barcelona]. Demonstrou que isto não é um trabalho como vi o meu pai e a minha mãe fazerem, de uma forma tão simples, mas uma ciência em que tudo é avaliado, trabalhado e estudado a um ponto que me estimula e torna-me um miúdo outra vez, com uma visão brutal das coisas.
Gere-se O Paparico com os mesmos alicerces que o Brasão?
São casas administradas de forma totalmente diferente, com recursos humanos diferentes. O primeiro pilar do trabalho que gosto de partilhar com a minha equipa é a hospitalidade. Sem demagogia, o mais importante é o cliente. Os clientes d’O Paparico vão ao Brasão e vice-versa. Procuram realidades diferentes, e isso faz com que os conceitos sejam geridos de formas muito distintas.
Ou seja…
N’O Paparico, o cliente tem uma expectativa elevadíssima. Há um conjunto de acessórios, de sala, vinhos, gastronomia, temperaturas, que são cruciais; “precisão” é uma das palavras mais importantes. Enquanto no Brasão o erro faz parte; o barulho faz parte; o cliente tem que se divertir, quer estar à vontade, às vezes falar um pouco mais alto. O Brasão reflecte o meu lado mais casual, e O Paparico o meu lado mais polido.
Há uma distinção semelhante nas matérias-primas que usas? Para O Paparico vai, digamos, o melhor do melhor, e para o Brasão vai o melhor?
O fornecedor do Brasão é o mesmo d’O Paparico, a matéria-prima é a mesma, mas o que é escolhido para O Paparico é aquele detalhe absolutamente sublime. Quando temos, por exemplo, uma peça da vazia que veio de um animal extraordinário, com 20 anos, que servimos nas tábuas de carnes maturadas, daquele vão inteiro tiro a vazia baixa, uns três quilos de carne, para O Paparico, e para o Brasão tiro sete quilos da vazia alta.
Isso torna a gestão mais…
Eficiente. O Brasão também nasce um pouco para dar estrutura ao Paparico. O Paparico é o meu restaurante de expressão total, enraizado na filosofia que trouxe quando vim de fora. Quando cheguei cá, ninguém falava de cozinha portuguesa. Os restaurantes de comida tradicional, nomeadamente O Paparico, estavam em decadência.
Porquê?
Era necessário introduzir ideias novas na cozinha portuguesa. Não adaptar coisas externas mas sim fazê-las bem feitas de raiz. E O Paparico é absolutamente focado na cozinha portuguesa. Digo isto muitas vezes: cinco ingredientes portugueses maravilhosos não fazem cozinha portuguesa. O que faz a cozinha portuguesa é o receituário. E o receituário traz uma coisa bastante interessante, cultura, e outra também interessante e empírica, que é a forma de fazer. Digo à minha equipa d’O Paparico que criamos dentro do mapa de Portugal. Essa é a nossa batuta criativa. Quero receituário, cultura e História para acrescentar ao prato.
Quando chegaste, ninguém ligava à comida tradicional portuguesa. E agora?
Passámos de uma globalização mental atroz para um orgulho nacional enorme, e isso está a acontecer em toda a Europa. Daí termos a esquerda cada vez mais forte. E a cozinha está exactamente nesse cenário. Há sete anos os países olhavam uns para os outros para irem atrás da next big thing. Hoje olhamos para o que temos cá dentro, e que pode ser extraordinário, para os outros prestarem atenção. Nesta fase, todos em Portugal querem fazer, e ainda bem, uma cozinha única, com um terroir enraizado na nossa cultura. O que nos vai diferenciar sempre é o que temos, o que fazemos e como o fazemos.
Qual é o teu chef favorito no Porto?
Sou um apreciador pessoal e gastronómico do Pedro Lemos. Porque é um cozinheiro sem artifícios. Porque desenvolve um padrão de sabor maravilhoso. E porque tem uma coisa que acho linda na cozinha: o minimalismo.
Vais a caminho do terceiro filho. Ainda tens disponibilidade para te meteres num avião só para ir jantar algures?
Continuo a fazer isso. O meu filho mais novo, embora ainda não se tenha sentado à mesa, já comeu para aí em quatro três estrelas [Michelin]. Faço-o porque tenho um imenso prazer em comer e não tanto por ser um profissional da área.
Onde foste da última vez?
Ao Hertog Jan, na Bélgica. Em Janeiro. Um restaurante maravilhoso. Por coincidência, no dia seguinte comi num duas estrelas em Bruxelas, o Bon Bon, que me surpreendeu ainda mais. Um restaurante é um conjunto de emoções. Não vives só a cozinha. Nessa noite houve o primeiro nevão na Bélgica, estava um ambiente deslumbrante.
Com base nas tuas viagens, já chegaste a alguma conclusão sobre o grau de conhecimento dos chefs estrangeiros sobre a cozinha portuguesa?
Ninguém sabe nada sobre cozinha portuguesa e pouco se sabe de Portugal. E se muito se soubesse sobre Portugal não viria tanta gente visitar-nos. Não quer dizer que não sejamos maravilhosos; só prova que ainda somos um país desconhecido que gera muita curiosidade nos estrangeiros. O que é interessante, porque nos coloca num patamar de poder surpreender muito mais bonito. É dos factores estratégicos mais importantes a nosso favor.
Numa noite no Porto preferes ir a um restaurante Michelin ou a um recanto mais dado a comfort food?
Vou a todos os sítios. Como tudo. E essa diversidade diverte-me. Há pouco tempo fui comer com a minha esposa. Naquela semana já tinha comido ramen no Pupo [João Pupo Lameiras, chef e responsável pelo RO], tínhamos ido ao Euskalduna, ao Ichiban. Pensei, “Porra, temos uma cidade do caraças para viver.” Para nós, que gostamos muito de comer, de diversidade e de qualidade, o Porto possui neste momento um leque incrível, do tradicional ao padrão três estrelas – embora não haja nenhum três estrelas na cidade, temos esse standard internamente. É um privilégio viver nesta cidade e poder desfrutar de tanta gente jovem a fazer tanta coisa boa.
Numa entrevista já deste ano, prometias a criação de uma marca de gelados artesanais.
Já vai bem mais avançado do que isso. O Paparico foi a raiz de imensas ideias interessantes que estão a dar projectos novos. No próximo ano, dois anos, acredito que vamos lançar quatro, cinco marcas para o mercado. Uma delas é a Filigrana, que incidirá mais na gelataria, chocolataria, pastelaria, salão de chá. Está na fase de adquirir know-how. Já tem espaço e abrirá em 2018.
O salão de chá não é uma espécie em vias de extinção?
Acredito muito que a minha missão na vida é reciclar todos os conceitos à minha volta que estão parados no tempo. Olho em redor e vejo cafés, cafetarias, confeitarias, vejo churrasqueiras, cervejarias, restaurantes tradicionais… Se calhar não vou trazer alguma coisa vanguardista, mas o que me dá imenso prazer fazer, e em que acredito mesmo, é abanar esses conceitos, refrescá- -los e apresentá-los às gerações futuras. As cervejarias eram todas iguais até ao nascimento do Brasão. Todas.
O Brasão tem imitadores?
É uma pedra no charco. Cria ondas. E já começam a surgir coisas novas. A cerveja artesanal não existia em Portugal. A cultura de a consumir muito menos. E agora é inevitável que qualquer cervejaria abra com esse tipo de conceito. Porque a essência de uma cervejaria é isso mesmo: ter várias cervejas à disposição. Não é ter vários tipos de comida. Senão chamar-se-ia outra coisa.
A tua missão, portanto, é repensar as coisas a partir da essência?
Não teria dito melhor [risos].
Neste momento limitas-te, no essencial, a cozinhar nos bastidores.
Embora seja muito novo, cheguei a uma altura na vida em que já consigo ter confiança dentro da empresa para eventualmente abrir um restaurante para mim como forma de expressão, completamente livre, e só cozinhar eu. É viável vermos isto a acontecer no futuro. Por puro prazer.
* Esta entrevista foi originalmente publicada em Agosto de 2017 na edição impressa da Time Out Porto