A menos de meia hora de Lisboa, a Linha de Cascais tem praias de sonho, bons restaurantes (principalmente de peixe) e até um bairro de museus para percorrer a pé e ir aprendendo pelo caminho. Se leva os miúdos na bagagem não se preocupe. É que não faltam coisas para fazer com crianças em Cascais, em qualquer altura do ano: quintas pedagógicas, jardins, actividades mais ou menos radicais, museus e mergulhos, muitos mergulhos. O mais difícil vai ser enfiá-los no carro – porque depois é só um tirinho e há muito para descobrir em família.
Não há buzinas, aviões a passar, nem ruído dos carris dos comboios. Pessoas também só se encontram aqui e ali, e o sinal da sua presença é abafado pelo chilrear dos pássaros e pelo vento que faz abanar a folhagem das árvores. Estamos na Quinta do Pisão, em pleno Parque Natural de Sintra-Cascais. São 380 hectares com entrada gratuita, onde é possível andar a cavalo e de burro, colher legumes na horta biológica e até fazer um trilho do Cuquedo (inspirado no protagonista do bestseller infantil português – e que até faz parte do Plano Nacional de Leitura). Porém, este espaço já teve muitas vidas. De necrópole a fábrica de tecidos, passando por um abrigo para mendigos, as histórias são para descobrir passo a passo. Vamos entrar?
Uma vida pré-histórica
É no antigo armazém de cal que a visita começa e acaba (apesar de ser possível seguir para a área dos trilhos sem entrar no local). Na Casa de Cal está o centro interpretativo, onde pode pedir informações, mapas, alugar bicicletas, comprar os produtos da quinta ou visitar a exposição permanente sobre valores naturais e histórico-culturais.
A pé, de bicicleta ou como der na gana de cada um (aqui a única coisa proibida chama-se carro), o percurso começa numa cápsula do tempo. A gruta de Porto Covo, que está mesmo à beira do caminho, remonta à Pré-História. No local foram descobertas ossadas de adultos e crianças, naquilo que tudo indica ter sido uma necrópole. Juntamente com os artefactos, as descobertas permitiram situar a utilização do espaço no período Neolítico e Calcolítico e Idade do Bronze e Idade do Ferro, o que significa que estamos a recuar 4500 a 5000 anos.
Mais à frente está um antigo forno, onde era cozida a rocha calcária. Por cima vivia o responsável, já que o fogo – que não podia ser nem muito forte, nem muito rápido – tinha de ser constantemente vigiado.
Passeios de cavalo e burro
No picadeiro há burros de raça mirandesa, que está em vias de extinção, e cavalos. Esta é das paragens mais cobiçadas da Quinta do Pisão. Há passeios que levam as crianças dos seis aos 10 anos a ver o espaço mais a fundo, durante cerca de hora e meia. A voltinha custa 25€ ou 30€, consoante o bicho escolhido. Os miúdos mais pequenos (a partir dos três anos) podem ainda aproveitar os ateliers, que consistem em escovar, alimentar, aparelhar e dar uma volta no picadeiro. A actividade com burro custa 10€, com um cavalo sobe para 15€. Mas, atenção, como a procura é muita, convém reservar um lugar com pelo menos três dias de antecedência através do e-mail atividadesnatureza@cascaisambiente.pt.
O mais curioso é descobrir as vidas que este espaço já teve antes de ser habitado pelas duas adoráveis espécies. A Quinta dos Perrinhos passou a ser Pisão em 1774 quando foi comprada pela Real Fábrica de Lanifícios de Cascaes, assim se chamava na altura, para pisoar tecidos no pisão (daí o nome actual). Tal como as uvas para fazer vinho, os tecidos eram calcados com os pés pelas saloias (habitantes dos arredores de Lisboa). As casas dos trabalhadores ficavam onde está agora o picadeiro e, ao lado, ainda sobrevive uma capela da época.
Abrigo para mendigos
A fábrica fechou em 1816 e os terrenos passaram para as mãos da Santa Casa da Misericórdia de Cascais. Não se sabe exactamente o que aconteceu nas décadas seguintes, até aos anos 1930, altura em que a quinta passou a ser a casa para mendigos. “A mendicidade era ilegal em Lisboa, portanto eram enviados para aqui, onde trabalhavam nos campos”, conta Bárbara Madeira, gestora de projecto da Quinta do Pisão.
No final dos anos 40 foi construído um espaço para pessoas com doenças mentais. No local passaram a conviver mendigos, prisioneiros da colónia penal, doentes mentais e tuberculosos. A PSP estava encarregue de manter a ordem. O registo de um ano de produção de todos estes trabalhadores (que não tinham propriamente opção) era qualquer coisa como: 397 kg de cevada santa, 651 kg de fava, 12,5 kg de mel, 615 kg de milho e 1809 kg de trigo rijo. O que estava dentro da lei foi, entretanto, transformado em centro de apoio social. O resto terminou.
Colher na horta para comer em casa
A Santa Casa de Cascais cedeu então os terrenos e a Câmara Municipal requalificou o espaço, que agora se estende por 380 hectares. O percurso mais comum faz-se até à horta biológica e, a pé, demora entre 30 e 40 minutos. Aí é preciso colocar, literalmente, as mãos na terra. Alface, ervas aromáticas e tudo o que estiver pronto a colher pode ser levado para casa. Há sempre alguém da Quinta do Pisão por perto para dar uma ajuda e esclarecer as dúvidas. As compras pagam-se na Casa de Cal e podem também incluir ovos. É que há outros moradores além dos burros e cavalos. Por exemplo, dez galinhas que, juntamente com as ovelhas, têm uma casa móvel que vai circulando. “Os animais comem os restos do solo e vão fertilizando”, explica Bárbara Madeira. Há, porém, uma galinha mais ousada do que as outras. “Põe-se nas costas de uma ovelha, salta a vedação e vai pôr os ovos onde quer, sem ninguém saber ou ver.”
A Quinta do Pisão também produz mel. Tem sete colmeias, geridas por quatro apicultores. Portanto, não se esqueça, junte um frasquinho bem doce às compras.
Animais à solta
Mais para cima, na zona mais íngreme do terreno, a paz é total. Há menos pessoas, mas os trilhos continuam a ser acessíveis a pé, de bicicleta ou a cavalo – quem tem cavalo próprio também pode circular livremente.
O Pisão está a desenvolver um novo projeto que consiste em levar grandes herbívoros para o Parque Natural de Sintra-Cascais para mitigar incêndios. “Eles vão comer o mato e abrir caminho para o crescimento de ervas mais pequenas, enquanto os dejectos também fertilizam o solo.” Até lá, pode encontrar cavalos sorraia e garranos, ambos bastante tímidos. Já os burros, gostam de se aproximar dos visitantes, embora haja avisos ao longo dos trilhos que pedem 12 metros de distância dos animais. Como é óbvio, também não devem ser alimentados. Outras espécies que se vão mostrando são raposas, coelhos bravos, garças reais e águias-de-asa-redonda, entre muitas outras.
Espalhados por toda a área estão 14 trilhos pequenos, que duram 30 ou 40 minutos a completar, pensados para um escape rápido no meio da natureza depois de um dia de escola, por exemplo.
Caça ao Cuquedo
Entreter as crianças aqui não é difícil. Além das actividades com cavalos e burros, há um trilho do Cuquedo (inspirado no livro infantil português O Cuquedo, de Clara Cunha e Paulo Galindro) que dura cerca de 20 minutos. É aconselhado aos miúdos a partir dos três anos, já que convém que tenham autonomia. É possível comprar um mapa, mas há indicações ao longo do caminho que ajudam a procurar a bolinha preta peluda, com pernas e braços magrinhos e olhos brancos esbugalhados sob umas sobrancelhas às riscas. O protagonista é inofensivo, mas tem um pequeno defeito: gosta de pregar sustos!
Eventos e campos de férias
Pela Quinta do Pisão passam cerca de mil crianças cada ano através dos campos de férias. “O mais engraçado é que vemos que são os filhos, que estiveram aqui nas colónias, que depois trazem os pais”, revela Bárbara Madeira. Nos fins de semana de Verão há Tardes na Quinta, com música e actividades, mas o grande evento do ano acontece em Maio. A Festa dos Maios estende-se por dois fins-de-semana e oferece actividades gratuitas, tosquia de ovelhas e muito mais.
Se tudo isto não for suficiente, do outro lado da estrada está a Pedra Amarela, um espaço que tem a mesma gestão da Quinta do Pisão e onde é possível fazer slide, arborismo e um circuito com arco. A paisagem é sempre de tirar o fôlego.
Todos diferentes, todos iguais
A Quinta do Pisão tem mais uma lição para dar: a da inclusão. Nos percursos há mesas de observação (com rochas, plantas, etc), todas com indicações em braile, para pessoas cegas ou com baixa visão. Há igualmente faixas de madeira junto às extremidades do percurso, para que possam seguir a pé.
Quem se desloca em cadeira de rodas também não fica de fora. Na Casa de Cal há carros para quem tem problemas de locomoção. “Às vezes as pessoas olham para eles com um pouco de receio, mas assim que percebem como funcionam, adaptam-se rapidamente. É uma forma de as famílias poderem aproveitar para passear todas juntas e de estas pessoas não sentirem que são um fardo”, explica Bárbara Madeira, que nos guia pela Quinta do Pisão.
Quinta do Pisão. Todos os dias, Abr-Set 09.00-21.00, Out-Mar 09.00-18.00