“Quanto é o broche?”
Poderíamos recorrer a um eufemismo,
mas não nos apetece. E não vamos pedir desculpa. Fotografávamos a Carolina numa rua do Porto, à hora de almoço, depois de uma conversa que resultou nesta entrevista – onde a violência sexual e a violência doméstica, a objectificação do corpo da mulher, a proibição da lei aborto e o medo foram alguns dos assuntos discutidos – quando um homem, na casa dos 50 anos, lançou a pergunta abjecta. Poderíamos também dizer que desconhecemos
a razão de tal acto, mas estaríamos a mentir. Sabemos que a resposta é uma
e, infelizmente, fácil. Tanto eu como a Carolina somos putas, obviamente, porque somos mulheres, como fez questão de frisar este indivíduo que alegou a liberdade de expressão para dizer o que
lhe apetecia. Foi um acto deliberado e gratuito que passou impune, porque na sociedade em que vivemos é desvalorizado.
“Ó meninas, deixem lá. Ele não sabe o que diz”, ouvimos. Ele sabe muito bem o que diz e só o disse porque sabia que não sofreria consequências. E a prova disso é que na sequência de mais insultos ligámos para fazer queixa e perguntar se algum agente se poderia dirigir ao local. Mandaram-nos procurar a esquadra mais próxima, que estava fechada. Ninguém quis saber. Podia ter sido mais grave? Claro. E é por isso que marchas e entrevistas como estas são precisas. Cada vez mais. Em prol das conquistas do passado, do presente, mas, sobretudo, do futuro.
O que é a Slutwalk, também conhecida como Marcha das Galdérias?
A Slutwalk surgiu em 2011 no Canadá, porque no campus de uma universidade em Toronto estavam a acontecer muitos ataques sexuais, com muitas mulheres a serem violadas. Numa conferência, um agente da Polícia fez uma declaração dizendo que as mulheres, para evitarem este tipo de crimes, tinham de deixar de se vestir como sluts, ou seja, como galdérias, pondo totalmente a tónica da culpa na pessoa que é violada ou atacada, pela maneira como se veste. Em Toronto fez-se a primeira Slutwalk, um movimento feminista com pessoas de várias origens e de diferentes correntes ideológicas, que partilham esta ideia de que ninguém tem responsabilidade pelos crimes que sofre, que ninguém provoca um crime sexual pela maneira como se veste. Nesse mesmo ano, a Slutwalk veio para o Porto e para Lisboa e, desde então, fazemos a marcha. Somos um grupo feminista interseccional e apartidário. Somos mais ou menos 15 pessoas na organização. A próxima marcha acontece no dia 13 de Julho e tem o mote: “Sim, estamos a pedi-las: autonomia, liberdade e justiça”. Começa na Praça Carlos Alberto às 22.00 e qualquer pessoa pode juntar-se a nós. Vamos fazer o percurso ali pelos bares da movida do Porto. Vamos passar na zona do Piolho, das galerias e vamos acabar em frente à Câmara Municipal, onde vamos ler o nosso manifesto e explicar as nossas reivindicações e motivos por que estamos a fazer este protesto.
Quais são os motivos e por que é que ainda precisamos desta marcha?
Queremos deixar claro que, como cidadãs, temos direito à cidadania plena, direito à Justiça, e esta tem de funcionar para nós, mulheres, da mesma forma que funciona para os homens, certo? E na realidade isso não está a acontecer. A partir do momento em que a Justiça está completamente permeada por machismo e objectifica o corpo da mulher e ainda nos vê quase como uma mercadoria, nós temos que protestar. Que Justiça é esta que nos injustiça? Que nos põe de lado? O caso do acórdão de “sedução mútua” foi escandaloso – acho que todos os portugueses deveriam estar mesmo muito escandalizados e furiosos com isto [Carolina faz referência ao caso da jovem de 26 anos que foi violada, em Novembro de 2016, por dois homens enquanto estava inconsciente na casa de banho de uma discoteca em Vila Nova de Gaia]. Como é que é possível acharem que uma mulher pode seduzir enquanto está inconsciente? Como é que uma pessoa que está desmaiada numa casa de banho pode estar a seduzir duas ou três pessoas que estão a violá-la enquanto ela está claramente inconsciente? É o ridículo do que fazem do corpo das mulheres, da sexualidade das mulheres. Somos tidas como um objecto, não só na sociedade, mas também na Justiça.
E há um outro caso que veio a lume, também recentemente, em que Neto de Moura, na altura juiz desembargador do Tribunal da Relação do Porto, censurou uma vítima de violência doméstica por ter sido infiel, recorrendo à Bíblia...
Exacto. Como é que em 2019 ainda há juízes a passarem este tipo de acórdãos? Aquilo está literalmente a validar a violência doméstica. Estamos num estado laico e haver um juiz, que está numa posição de poder validar que as mulheres podem ser agredidas se forem adúlteras, se forem sluts, se forem malcomportadas, é impensável. Isto é tudo para nos meterem no sítio, no lugar de subserviência em que nos querem, e nós não podemos aceitar.
O que podemos fazer para mudar isto?
Acreditamos que para haver educação – em termos de violência de género, de respeito pelo corpo e pela vontade alheia, sobre o feminismo, que é muito urgente – tem de haver diálogo e temos de quebrar o tabu. O assédio, o machismo, a violência doméstica e todas estas questões são transversais à nossa sociedade. É muito difícil encontrares uma mulher adulta ou um homem adulto que nunca tenha passado, em algum momento da sua vida, por um episódio de violência ou de assédio no trabalho, na discoteca, nos transportes. No entanto, continua-se a apontar o dedo à pessoa que está a falar disto. Embora estejas a falar de uma coisa que nos afecta a todas, a pessoa que fala vai ser sempre olhada de lado, vai ser sempre vista como uma slut. “Ah, mas isso aconteceu-te porque tu estavas naquele sítio”. “Fizeram-te isso porque tu estavas assim vestida”. “Estavas a pedi-las”. “Puseste-te a jeito”. É este tipo de crença que temos de quebrar. Queremos fazer ver que isto diz respeito a todas nós, a toda a sociedade. Já podíamos estar tão à frente enquanto sociedade e ainda estamos perdidos nestas porcarias todas. Queremos falar e desmistificar isto, ninguém é galdéria, ninguém é slut por ter sido apalpada no metro, por ter sido assediada na Queima. Ninguém tem culpa alguma disso. Queremos mudar isto e isso passa pelo diálogo e pela educação. Com os pais, com os filhos, com os parceiros e com os amigos. É completamente surreal em 2019 estarmos a pedir para que sexo sem consentimento seja considerado violação na lei. É risível, não é?
Tivemos um início de ano catastrófico, com dezenas de mulheres a morrerem vítimas de violência doméstica. Fala-se mais porque os media estão mais atentos?
Finalmente estas histórias começam a ter espaço nos media. As pessoas também começam a ter um interesse mais sério em compreender estes crimes. Mas perante isto, achamos que está a haver um retrocesso, uma reacção violenta aos avanços que têm sido feitos. No entanto, estes são só os casos que conhecemos, porque sendo crimes tabu não temos um número real de vítimas, porque as pessoas ainda não podem falar e quando falam muitas vezes a Justiça dá-lhes na cabeça por cima.
A violência doméstica deveria ser um problema de toda a gente? Nomeadamente dos vizinhos e das pessoas que convivem mais de perto com as vítimas e que deveriam ser incentivadas a denunciar?
Óbvio que sim. Hoje em dia já temos mais conhecimento sobre o que é a violência doméstica. A vítima não vai conseguir pegar no telefone e ligar à Polícia a pedir ajuda enquanto está a ser agredida. Socorrer é uma questão de humanidade. A violência tanto é psicológica, como é financeira ou familiar. É uma rede que prende as pessoas. Há a tendência para se partir do pressuposto que se foi agredida sai da relação. Mas não é assim, a maior parte das vítimas não tem dinheiro para abandonar o agressor, tem medo que os companheiros as matem, que lhes levem os filhos, são tantas coisas diferentes.
Ou seja, a mulher não tem assim tanta liberdade...
Não tem, não tem de maneira nenhuma. Há ruas da cidade, por exemplo, onde nós não podemos passar sozinhas. Há horários desaconselháveis para sairmos sozinhas. Podemos viajar sozinhas, claro, mas, efectivamente, isto representa um risco maior para nós porque vivemos nesta sociedade de violação. É-nos ensinado que precisamos de alguém que nos leve a casa no final da noite, de alguém para viajar connosco e estas coisas que nos são incutidas restringem a nossa liberdade. Podemos fazer tudo sozinhas, mas fazemos com medo. E a culpa vai ser sempre nossa.
E agora o Alabama, nos EUA, juntou-se a mais seis estados que proíbem o aborto...
Estas coisas acontecerem é péssimo, é tenebroso, mas é para nos lembrarmos que todos os direitos que nós temos agora e que damos como adquiridos podem desaparecer. Basta vir um governo mais conservador e os direitos da mulher podem ir para o lixo. E se for preciso, os direitos da comunidade LGBT também. Todas as conquistas que já temos podem-nos ser retiradas a qualquer momento. Por isso é que temos de estar na luta. Sempre.