Um livro retrospectivo, a organização da representação lusa na Bienal de Arquitectura de Veneza, a reabilitação do Bairro de São João de Deus e uma obra magna para o Porto: o Terminal Intermodal de Campanhã. Muitos asseguram que, com Nuno Brandão Costa, o futuro da Escola do Porto está assegurado. Um encontro no seu gabinete no Bairro da Bouça
Lembra-se de olhar pela primeira vez para um edifício e de pensar em algo para lá do que estava a ver? De pensar, digamos, numa dimensão arquitectónica?
Uma pergunta difícil e sofisticada [risos]. Quando era miúdo, os meus pais começaram a viajar de carro pela Europa. Eles, eu e o meu irmão. O primeiro edifício que vi e me impressionou muito, pela escala que não existia em Portugal e pelo ambiente do edifício, foi o Mont Saint-Michel, na Bretanha. Foi construído numa zona inundável e tem uma dimensão incrível. Parece uma paisagem surrealista.
Essas viagens de carro pela Europa influenciaram muito o que faz agora?
Foram coisas bastante importantes na altura e das quais mantenho uma memória viva. Foram várias, sobretudo por França, Itália, Inglaterra, Escócia e centro da Europa. Já voltei a vários desses sítios, mas a memória que fica mais viva é sempre a do primeiro impacto.
Grande parte da sua obra está no Norte. Fruto do acaso?
Acho que sim. Tenho uma obra ou outra em Lisboa, mas foi acontecendo assim. As obras públicas estão todas no Norte, embora o primeiro concurso que ganhei tenha sido para uma biblioteca em Lisboa que não avançou [Biblioteca Central da Faculdade de Ciência Sociais e Humanas da Universidade Nova, 1998]. Como há neste escritório uma cultura de acompanhar as obras de uma forma muito intensa, o facto de elas estarem perto ajuda. Isto não quer dizer que, se fizesse uma obra fora (e já fiz), não a realizasse com a mesma intensidade [risos]. Aliás, pediram-me agora para fazer uma casa na Catalunha e a minha ideia é fazê-la como se fosse aqui. Mas muitas das casas que fiz são casas de férias para pessoas do Porto que as constroem no Minho, na zona de Moledo, Caminha.
As características geográficas das zonas onde tem maioritariamente construído condicionam a percepção que se tem da sua obra? Vêem-no como um arquitecto do granito?
As minhas obras são sempre muito permeáveis aos sítios onde são implantadas. São permeáveis porque há uma atmosfera que tem a ver com o clima e a topografia, mas também está ligada à forma de construir. No Norte permanece a tradição de construir em perpianho de pedra, e há bastantes obras minhas que são todas ou parcialmente construídas nisso.
As suas construções também estão frequentemente dissimuladas na paisagem.
Faz parte da natureza de construir. Fazer muros e pavimentos em granito, aquilo é como se fosse uma extensão da própria topografia.
Na monografia há pouco editada, Porosis: The Architecture of Nuno Brandão Costa, as fotografias do André Cepeda aos seus edifícios parecem denunciar um gosto pela apropriação das construções por parte da natureza. Há ervas daninhas invadindo pisos, tinta a desvanecer-se em muros e paredes.
Gosto disso. É um processo comum de se ver nas construções, na cidade ou fora dela, sobretudo quando estão em contacto com matéria orgânica. Este livro também retrata as obras num momento posterior à construção. Algumas têm dez anos, 12, outras cinco, seis. O André apanhou muito essa relação da obra com o tempo. A obra, quando está pronta, tem sempre um ar imaculado, e algumas mantêm-se assim, mas gosto que ela tenha uma certa permeabilidade ao tempo. É até daí, dessa ideia de porosidade, que vem em parte o nome [do livro].
Em que ponto se encontra o Terminal Intermodal de Campanhã (TIC)?
Entregámos o projecto de execução e a obra está em processo de lançamento. A ideia do município é começar a obra a meio deste ano.
Tendo em conta o que disse há pouco, é uma obra que acompanhará…
Intensamente [risos]. Ainda por cima é muito perto. Aliás, estou a fazer outra obra no Porto, no Bairro de São João de Deus, que também acompanho intensamente. É quase diário.
A intervenção no Bairro de São João de Deus esteve para ser concluída no ano passado.
A primeira fase ficou concluída no ano passado. Agora está na segunda fase e haverá ainda uma terceira. A primeira fase eram edifícios de raiz, a segunda e a terceira em edifícios existentes. A segunda fase está um pouco atrasada, mas é normal: em edifícios existentes os prazos tendem a não ser tão fáceis de estabelecer porque há imensos imprevistos.
O que aconteceu a quem habita esses edifícios existentes?
Às pessoas foi dada a opção de irem [temporariamente] para outro sítio, mas elas quiseram manter-se por ali. Estão a viver em casas provisórias, pré-fabricadas. Tem o lado interessante de acompanharem a obra. Claro que não estão na situação mais confortável, embora tenhamos que ver que as casas estavam numa situação muito degradada, mesmo do ponto de vista da salubridade.
Também é da opinião de que Campanhã é a zona do Porto com mais potencial para desenvolver uma ideia renovada de cidade?
Sem dúvida. A zona poente da cidade está completamente estabilizada e, se calhar, sobrecarregada de gente. O centro também já encontrou um novo paradigma. Vivi muitos anos na Baixa, de 97 a 2009, e costumava dizer que eu e mais uns amigos morávamos ali praticamente sozinhos [risos]. Agora a Baixa não tem nada a ver com a que conheci. Não estou a fazer juízos de valor, embora ache que, para todos os efeitos, é positivo. É melhor do que como estava, porque era um deserto. Sempre tive a esperança de que a Baixa acabasse por se preencher, até porque víamos isso a acontecer em Barcelona, Madrid, mas nunca pensei que fosse tão rápido. Além do turismo, também há o impacto bastante forte e positivo dos Erasmus – a Universidade do Porto tem uma carga de Erasmus cada vez maior, que traz outra energia à cidade.
Falta a zona este.
As Antas têm uma situação muito estabilizada desde os anos 1930, 40, mas falta toda a zona de Campanhã, que tem vários potenciais. Em primeiro lugar, um potencial atmosférico: é uma zona com uma luz incrível provocada pelo Vale de Campanhã, que funciona como um difusor. Depois, a topografia, que não existe em mais nenhuma zona da cidade, que é muito
acidentada. E tem um potencial urbano brutal, numa escala que não existe em mais nenhum sítio no Porto, e com uma estrutura viária mais ou menos construída. É um espaço polivalente: ali conseguimos criar zonas de habitação colectiva, familiar, equipamentos culturais, infraestruturas...
O impacto principal do TIC sentir-se-á sobre essa estrutura viária?
O terminal também terá uma intervenção viária, de reordenamento daquela zona, que está neste momento muito caótica. É uma oportunidade para introduzir ali um equipamento infraestrutural que vai pôr a cidade a funcionar do ponto de vista das comunicações e mobilidade, trazendo gente de fora da cidade que vem nas camionetas, comboios, metro, etc.; mas também fixar gente local, e atrair pessoas novas para lá viverem, com um grande parque ajardinado.
É possível cumprir todo esse potencial urbano de Campanhã sem forçar a saída de quem lá vive com menores condições económicas?
É absolutamente fundamental. E é isso que se está a fazer em São João de Deus: manter as pessoas que estão lá (se for essa a vontade delas, como é evidente). A cidade sustentável e que tem futuro é a cidade compacta, ocupada e construída, mas com variedade social.
No site deste estúdio lê-se isto, a propósito do seu objectivo: “A linguagem pesquisada é, no geral, baseada em formas elementares, geometria simples e precisa, e organização espacial racional, explorando o equilíbrio entre pragmatismo e poesia.” A sua obra tem alcançado esse equilíbrio?
Espero bem que sim [risos]! A arquitectura tem sempre várias dimensões. Uma, a própria essência do projecto, tem a ver com o lado utilitário. Ao contrário de outras artes, como as plásticas, a arquitectura tem de corresponder a um programa e tem de ser habitável. Há um lado de senso comum a que a obra tem de dar resposta. Por outro lado, há uma dimensão estética, que remete para um plano mais subjectivo, para a qual a obra tem de ter abertura. A obra é sempre um equilíbrio entre a racionalidade e a ambiguidade.
A representação portuguesa na Bienal de Arquitectura de Veneza 2018, organizada por si e pelo Sérgio Mah, foca-se na importância dos edifícios públicos na construção da cidade, com obras de arquitectos nacionais feitas nos anos da crise, em Portugal e no estrangeiro.
Pretende-se que essas obras abarquem todas as gerações no activo. É um conjunto de obras pequeno, até porque o espaço onde vamos fazer a exposição é limitado. Os edifícios são escolhidos pela sua qualidade e por representarem a importância do edifício público como elemento fundamental da construção e qualificação da cidade. São obras já finalizadas de um período, de 2007 a 2017, em que a obra pública foi considerada uma coisa quase nefasta, mas no qual conseguimos ainda assim encontrar exemplos de edifícios muitos interessantes. Alguns vinham de projectos anteriores à crise e que se finalizaram nessa altura, com mais ou menos dificuldade. Outros, por capacidade de superação dos promotores (poder central, mas sobretudo municípios), foram lançados nessa altura. E outros mais recentes, que já viveram desta vaga mais optimista.
Há marcas nessas obras que as distinguem de outros períodos? Isto é, há sinais da crise nesses edifícios públicos?
É uma questão interessante que a exposição fará reflectir. Mas há uma coisa que se verifica: os arquitectos em causa mantiveram o entusiasmo, se calhar até tiveram mais resiliência a fazer as coisas, e a qualidade dessas obras é extraordinária, mesmo feita em condições muito difíceis.