Beatriz Gosta
© Marco Duarte Beatriz Gosta
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Beatriz Gosta: "Quando estiver tudo igual, o feminismo deixa de fazer sentido"

Atirou-se de cabeça para acabar com o medo e encheu o Teatro Sá da Bandeira num ápice. Conversámos com a carismática Marta Bateira, mais conhecida como Beatriz Gosta, que se estreia este mês no Porto a fazer stand-up comedy

Mariana Morais Pinheiro
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És uma espécie de três em um. És Marta Bateira, és Beatriz Gosta, és M7...

Se calhar até sou mais coisas, como toda a gente, só que vinco estas de uma forma mais assumida. Acho que toda a gente tem várias personagens e heterónimos.

Onde é que começa uma e acabam as outras?

Acho que ninguém tem essa coisa bem separada. O extravasar da Marta (quando a Marta cria alguma coisa, tanto em M7, como em Beatriz, ou em outras coisas mais) testa os seus limites e tenta reinventar-se na criatividade. Esse é o desafio. A Beatriz surgiu de uma forma muito natural. Estava muito frustrada (estava bem, tinha uma estabilidade financeira bacana, trabalhava numa empresa, era designer de moda, dava para pagar as contas), mas sentia-me frustrada porque a nível criativo não estava preenchida. E falei com a Capicua, numa altura em que estava com pouca fé e criatividade, com pouca coragem para fazer um álbum a solo de M7, estava bastante infeliz porque acordava às 6h da manhã para ir trabalhar (trabalhava numa coisa que não me dava muita liberdade criativa) e, depois, acabas por sentir que a tua vida não faz muito sentido. Era aquela coisa um bocado máquina. Aos fins-de-semana vais para os copos para compensar a vida que não te está a realizar. Então, quando estava a falar com a Capicua, ela disse: “Tu a contares histórias és única e tens a tua forma de falar muito tcham tcham”. Comecei a fazer sozinha, mas como não percebo nada de vídeo, ficava uma merda. Tentei sozinha, não rolou, desisti. Até que, quando menos esperas, reúnem-se as condições todas.

Como é que isso aconteceu?

A Capicua tinha falado com o André Tentúgal, que tinha feito um videoclipe para ela... com o Tentúgal e com o Vasco Mendes, dois realizadores que fazem documentários, fazem videoclipes para músicos, fazem montes de coisas e são barra. Então, eles, mesmo sem dinheiro, agarraram a ideia e “ya, vambora”. Juntámos o Vítor Ferreira, que trabalha também com a Capicua e é ilustrador ao vivo, e todos: “vamos na aventura!” A Capicua ajudou-me a organizar a agenda e o material das histórias e, quando saiu o Pack Night [o primeiro vídeo no Youtube da série Beatriz Gosta], eu olhei e disse: “Ei, isto está bom, caralho. Nossa, está de rir.” Eu rio-me muito de mim própria, até porque sou muito exigente. Mesmo com o rap, acho sempre que nunca estou bem.

Como foi a reacção do público?

O primeiro episódio saiu em Fevereiro de 2015 e bateu muito, os media perceberam logo a parada e a mensagem, assim com um feminismo meio louco. Uns, que já sabiam que eu era a M7, disseram: “ya, isto não foge muito ao que ela é”. Queria fazer rir, mas como sou feminista, e não tenho problemas nenhuns em o admitir, porque é uma forma de estar na vida, isso reflectiu-se no meu trabalho. Mas foi muito isso, foi isso que aconteceu... Eu já não sei qual era a pergunta. Estávamos a falar do quê? [risos]. 

[Risos]. O feminismo no teu trabalho...

Eu tenho o meu feminismo, não é nada contra os homens, bem pelo contrário – gosto bastante deles – e, vamos lá ver, um homem pode ser feminista. Acho triste quando uma mulher não é feminista, fico muito em baixo, quero cortar os pulsos com uma colher de sopa. O feminismo, para mim, só faz sentido porque não está ela por ela, não está igual. Quando estiver tudo igual, o feminismo deixa de fazer sentido, podem matar a palavra. Fiquei feminista ao longo do tempo (ainda estou em processo até ao fim da vida), porque nesta sociedade estão montes de coisas instaladas que não são iguais. Mudei quando conheci a Capicua, a Joana, as minhas amigas, porque até lá compactuava com o machismo: tentava agradar aos rapazes, vestir-me para eles, anulava-me, não era nada emancipada, não era nada de dar a minha opinião, era retraída. Por isso, cruzares-te com alguém na tua vida pode mudar tudo. Com 15 anos, lá no Aldoar, no grupo de amigos conheci a Capicua, a Joana, a Mariana, já bastante politizadas no PSR, que depois originou o Bloco de Esquerda, que iam a acampamentos internacionais... Tínhamos amigos homens, funcionava tudo de igual para igual, e era bom. Assim se instalou o feminismo, tornei-me mais curiosa, comecei a questionar as coisas.

Foi assim que deixaste de ser tímida para hoje falares com o à-vontade que te caracteriza?

Ui, era muito tímida. Foi quando vim para o Porto com 12 anos. Vinha da Rechousa [Gaia] e fui para Aldoar e aquilo foi mesmo muito diferente para mim (impressionante como uma ponte faz toda a diferença), ainda para mais durante a adolescência, em que estás tipo bué curiosa e há estímulos de todo o lado e agarras tudo e é aquela época em que achas que ninguém te entende, então, fiz muita merda, mesmo: os rapazes, o teu corpo como mulher, os surfistas, a malta das Vespas, o rap, o hip-hop, as festas underground, as tribos. Antigamente havia o espírito das tribos, havia um grupo ao qual pertencias que te estimulava, que te enriquecia, que te obrigava a puxar pela cabeça. Pertencias a uma cultura, havia um grupo que te dava uma identidade e te fazia sentir mais forte e, então, pronto… Já me esqueci da pergunta outra vez, porque eu falo bastante [risos], ah, eu era tímida...  Então, eu nunca tive a pretensão de ser famosa. Há muita gente que começa da forma errada que é: “eu quero ser famoso mas não sei em quê, não sei se vou ser bailarino, se vou ser modelo, de vou ser influencer”... Portanto, se me fecharem as portas, se me censurarem, fuck you, eu quero ser livre. Vamos lembrar uma coisa, eu sentia-me presa, com pouca liberdade na empresa onde trabalhava, quis ser livre. As pessoas ficam presas a estas coisas, não dão opinião, não se posicionam com medo de perderem fãs ou contratos de publicidade ou o raio que o parta. Eu não estou nessa parada. Eu quis ser livre e acredito em melhorar o mundo.

Como é que se melhora o mundo, então?

O pessoal acha que não faz sentido seres feminista hoje em dia, que é perigoso porque agora têm medo que se invertam os papéis. As mulheres e as minorias estão a ganhar muita força e o desequilíbrio dá a sensação de que os homens hetero é que vão sofrer agora. Acho isso absolutamente ridículo, mas é muito importante falar de vários assuntos abertamente, porque quando não falas dá problema. Antes, as pessoas falavam abertamente e tu tinhas como apontar o dedo, hoje as pessoas camuflam, ‘tás a entender? As pessoas dizem que não são racistas, dizem que querem as mulheres no mesmo cargo que os homens, mas na vida real não é assim que acontece. Acho que é falando, de forma não agressiva (acho que nunca fui muito agressiva) e dando o exemplo que se resolvem coisas. Por exemplo, as pessoas estão machistas ou estão racistas, as pessoas não são estanques, eu não nasci feminista. Eu ainda me policio todos os dias. Eu também falho, por isso, quem sou eu para estar: “Tu, és um machista de merda e não sei o quê.” O Facebook e as redes sociais fazem muito isso. As pessoas ficam muito excitadas e vão para ali julgar o outro e: “Eiii, fogueira e pedras com ele.” Calma, baby. Por isso é que a minha abordagem é leve, acompanhada de uma piada tranquila. Acho que as pessoas podem mudar, têm esse direito e esse espaço, e quem sou eu para julgar se eu também erro. E erro pa’caralho.

Onde é que te inspiras?

Às vezes, para fazeres uma piada, tens de pôr as pessoas em caixinhas e enquadrá-las em estereótipos quando, na vida real, luto para sair das caixas. Mas para fazeres humor precisas um bocado disso. 

Alguma vez tiveste uma reacção negativa à tua abordagem?

A Teresa Guilherme não me dá chance nenhuma, manda-me à merda só com o olhar. Tenho medo dela, já vou a medo [risos]. Há pessoal que é lixado. Que diz assim logo: “Não vais gozar comigo.” Não estou a quer gozar contigo, man, estou a querer grisar-me contigo. Ainda estas férias o pessoal matou o meu cabelo. Foi chunga e eu estava num dia não [risos], mas é bom saberes rir de ti mesmo.

E fazer rir os outros também. Há stand-up comedy teu para ver no Porto este mês, com o Quem acredita vai.   

Sim, os espectáculos saíram muito a saca-rolhas porque eu, como te disse, sou muito insegura com o meu trabalho, nunca acho que o trabalho está bacano. O pessoal convidava-me para fazer stand-up comedy com base nos vídeos e eu dizia: “não, não, só faço aquele formato”. No máximo faço umas palestras sobre sexualidade nas escolas, comunicação, redes sociais… mas eu dizia que não a tudo. “Não faço isso, mas obrigada”. Até que há um ano disse: “Acabou, vou arriscar e contar histórias!” Quero uma agente e vou fazer um tour.

O que é que podes adiantar sobre isso?

Vou estar só eu a solo durante 1h10 em palco, mais ou menos, e não fiquem cá a pensar que há convidados. É para ganhar calo mesmo, sabes, para andar na estrada, para me espatifar toda e poder dizer que sou stand-up, chupem, quero ganhar estaleca e não ir para o palco a morrer “ai meu Deus, ai meu Deus do céu”. Vou contar histórias, vai haver interacção com o público e, se calhar, até pode ter uma surpresa.

O que é que queres mais da vida?

Olha, eu sou uma sonhadora, gostava de fazer o meu álbum de rap porque as pessoas já estão a perder a paciência comigo (e eu também) e gostava de ter um programa de televisão meu. Assim, à cara podre, sendo muito ambiciosa. Acho que era fixe.

Como seria um dia perfeito no Porto?

Acordo, faço um batido e vou treinar para Matosinhos, em frente à praia, ou para o Parque da Cidade. Treino e sinto-me logo bem orgulhosa de mim. Tomo uma ducha e quando estou de mau humor ou mais em baixo vou ao vintage (sou viciada em vintage) fazer umas comprinhas naquelas lojas pelas quais não dás nada. Vou para a biblioteca trabalhar, junto ao jardim de São Lázaro, e, ao fim da tarde, gosto de tomar um vinhinho no Aduela. Às vezes até jantas vinho e quando dás por ela estás com uma piela danada. Gosto de ir ao Passos Manuel e aos Maus Hábitos, e de comer na Geninha, por 3€, perto da minha casa – naqueles cafezinhos que só nós sabemos que ainda existem.

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